Política do Japão enfrenta tremores com o inesperado avanço da direita radical
Em meio a tantas incertezas, está claro que o fenômeno Sohei Kamiya, também chamado de Trump japonês, não é onda passageira

Depois de sair destroçado da Segunda Guerra, o Japão começou a se reerguer, embalado por uma generosa injeção de recursos dos Estados Unidos que pôs a ilha densamente povoada em rota ascendente, com o PIB avançando a taxas superiores a 10% ao ano. Apostava-se que despontaria aí uma superpotência capaz de ombrear com os americanos. Os japoneses de fato prosperaram, fazendo florescer uma indústria que ajuda a girar as manivelas da inovação global, mas perderam o fôlego de antes. Estacionaram, porém, em elevado patamar, atravessando tempos bicudos no rol das nações mais ricas e à margem de males que sempre tiraram o sono de fatia expressiva dos mortais, como inflação e declínio na renda. Só que, de uns anos para cá, também lá a população vem sentindo no bolso os sacolejos da economia, fruto de gargalos internos e das instabilidades mundiais.
E não deu outra: mesmo imerso em cultura pouco afeita a viradas radicais, um inesperado naco do eleitorado recém depositou seu voto no Sanseito, um partido novato criado dentro das fronteiras do YouTube pelo outsider Sohei Kamiya, um ex-gerente de supermercado de 47 anos até então relegado ao baixo clero — o que vem balançando a política local como há muito não se via. Nas eleições legislativas de 20 de julho, Kamiya, que despontou no horizonte da terra do sol nascente disseminando teorias conspiratórias na pandemia, comandou a conquista de catorze assentos na Câmara Alta do Parlamento (equivalente ao Senado brasileiro), quando nas projeções ficaria com apenas seis.
O surpreendente desempenho da sigla, cujo lema não por acaso é “Japan First” — explícita alusão à bandeira “América em primeiro lugar” agitada pelo presidente americano Donald Trump —, foi decisivo para embaralhar as cartas nas altas esferas do poder. O Partido Liberal Democrático (PLD), do primeiro-ministro Shigeru Ishiba, tomou um baita susto, não emplacando mais do que 47 cadeiras das cinquenta necessárias para ter maioria e governar sem tantos sobressaltos nem costuras. O resultado dos conservadores tradicionais, há setenta anos no comando, acendeu um alerta, dando contornos a uma tendência que se alastra pelo mundo, mas é nova naquelas bandas do Oriente — a escalada da direita radical. “Como ocorre em outros lugares, os votos a Kamiya são também um ato de protesto contra o establishment representado pelo PLD”, avalia o historiador Jeff Kingston, especialista em estudos asiáticos.

O discurso com que o outsider da vez rodou o país apela às “forças antiglobalização” e é carregado de mensagens de cunho nacionalista, tal qual o de líderes do mesmo matiz mundo afora, alçando ao centro do debate a imigração — tópico sensível no Japão, historicamente mais fechado a estrangeiros. A maioria dos trabalhadores de fora que aportaram por lá nos anos de 1980 já se foi, mas aí o governo decidiu incentivar a imigração diante de um tsunâmi demográfico: em nenhum outro canto do planeta a população está tão envelhecida, o que cobra um alto preço, com falta de gente para deslanchar as engrenagens da economia e uma porção imensa e onerosa de aposentados. A fatia de estrangeiros no país expandiu 10% em 2024, um recorde. E foi justamente em cruzada contra eles que Kamiya angariou simpatizantes, atraindo o jovem eleitorado masculino, cioso de seu lugar em um mercado particularmente competitivo no topo da pirâmide salarial. “Os estrangeiros compõem uma invasão silenciosa, estão roubando nossos empregos”, bradava Kamiya em campanha, sem citar dados. “Ele usa a estratégia fácil de culpar os estrangeiros pelos problemas da sociedade”, afirma a cientista política Hiromi Murakami, da Universidade Temple, em Tóquio.
Além do imbróglio da crescente escassez de braços, o Japão — que perdeu vigor na covid, sente os efeitos da guerra na Ucrânia e ainda duela por espaço na região com a onipresente China — registrou outros dissabores recentes: a primeira inflação em três décadas, em 2022, a desvalorização do iene, o aumento do custo de vida e os salários estagnados. Só o arroz, item que não pode faltar no prato japonês, dobrou de preço, resultado de seguidas safras ruins. Bem que o governo tentou fornecer incentivos para que as pessoas retirassem seu dinheiro da poupança para dinamizar a economia, mas nem isso as fez abrir mão do arraigado hábito de guardar para o futuro. Neste momento, o primeiro-ministro Ishiba está ainda às voltas com uma dura negociação para baixar as tarifas impostas por Trump, de 25% — o que, aliás, caiu sobre sua cabeça bem às vésperas da eleição. Em meio a tantas incertezas, está claro que o fenômeno Sohei Kamiya, também chamado de Trump japonês, não é onda passageira.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956