Peruanos lotam as ruas em protestos reprimidos com violência
Manifestações são resultado da irritação com a prisão de Pedro Castillo, que tentou dar um golpe, e com o incessante entra e sai de presidentes
Desde que a ditadura de Alberto Fujimori (condenado e preso por crimes contra a humanidade) se encerrou, em 2000, o Peru passou por nove presidentes, em um vaivém de poder infinito e triste. Dos nove chefes de Estado, três cumpriram mandato, mas foram alvos de inquéritos por corrupção; dois acabaram afastados antes também envolvidos em suborno; um renunciou, o sexto durou cinco dias e o oitavo — o esquerdista Pedro Castillo — está detido por tentativa de golpe, o que abriu espaço para que sua vice, Dina Boluarte, assumisse a Presidência. Até Castillo, a população assistiu inerte, meio anestesiada, ao dominó de chefes caídos. Agora foi diferente. Desde 7 de dezembro, quando o ex-sindicalista sem experiência política tentou dissolver o Congresso e governar por decreto e acabou na cadeia, protestos diários ocupam as ruas de várias cidades, apesar da repressão violenta — sob estado de emergência, polícia e Exército agem em conjunto — que já deixou 49 mortos, sendo 48 civis.
Depois de uma pausa nos feriados de fim de ano e de uma mensagem sem noção de Boluarte decretando 2023 “o ano da unidade, da paz e do desenvolvimento”, as manifestações voltaram com mais vigor ainda. Estradas estão bloqueadas, ao menos duas minas de cobre paralisaram as atividades e uma marcha convocada em vários pontos do país ameaçava inundar a capital, Lima, de peruanos insatisfeitos não só com o afastamento de Castillo, mas com o tenebroso vácuo político que não tem fim. “Esta democracia não é mais democracia”, bradam os manifestantes, que exigem a imediata renúncia da presidente e do Congresso e a convocação de uma Assembleia Constituinte. Boluarte diz que não vai sair — “Não é que Dina não queira, mas deixar a Presidência abriria uma brecha perigosa para a anarquia e a desordem”, tentou justificar o primeiro-ministro Alberto Otárola. O Congresso, por sua vez, aprovou a antecipação de eleições de 2026 para abril de 2024— muito distante para uma população que já não aguenta mais tanta confusão.
“Quantos mortos vai custar sua permanência no poder? Peruanos de esquerda e de direita devem fazer essa pergunta. Cargo nenhum está acima de vidas”, questionou Richard Hancco, governador da província de Puno, no Sul, sob toque de recolher e com o aeroporto fechado após tentativa de invasão por cerca de 10 000 pessoas. Em Juliaca, ao menos nove dos dezessete mortos apresentavam fragmentos de balas atiradas pelas forças da segurança — elas mesmas afirmam que os manifestantes carregam armas caseiras e explosivos improvisados.
Escancarando o profundo descontentamento geral, uma pesquisa do Instituto de Estudos Peruanos (IEP) mostrou que 30% dos entrevistados apoiam a tentativa de golpe de Estado do ex-presidente Castillo, 41% estão de acordo com seu decreto de dissolução do Congresso e 50% se identificam com os protestos (60% na área rural, de onde vem o presidente afastado). “Ficou mais complicado achar uma saída, porque à desconfiança e à rejeição de antes se soma a dor pelos mortos e feridos. Sem uma correção de rumo, a lógica do confronto seguirá prevalecendo”, analisa Martín Tanaka, pesquisador do IEP. Boluarte, na visão da oposição, encabeça um governo que não veio das urnas e um Congresso sem projetos para melhorar a vida dos mais pobres em um país onde um quarto da população vive na miséria. “O grande erro do setor político é confundir incoerência com astúcia política”, resume Alonso Villarán, pesquisador da Universidad del Pacífico, em Lima.
Nas ruas, o sentimento maior expressado pelos cidadãos, superando as exigências de restituição de Castillo ao cargo e a convocação da Constituinte, é uma profunda decepção com a democracia tal qual ela vem sendo exercida, traço que se repete, à esquerda e à direita, em vários pontos da América Latina. Entram nessa conta as recentes mobilizações em massa no Chile e na Colômbia e, sim, o vandalismo que se viu em Washington, em 2020, e a balbúrdia golpista de Brasília neste mês — nesses dois casos, tendo como motor da violência a falsa premissa de eleições fraudadas. No Peru agora em convulsão, o AmericasBarometer, pesquisa sobre confiança na democracia conduzida pela Universidade Vanderbilt, dos Estados Unidos, mostrou que apenas 21% dos entrevistados se dizem satisfeitos com o sistema, porcentagem só superada no Haiti, uma percepção melancólica — e perigosa — da realidade em um país que saiu da ditadura há menos de duas décadas.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825