Peru: uma semana, três presidentes
A corrupção vem abatendo, um por um, os mandatários peruanos. Os protestos que acompanham a crise atual mostram que a população está farta
Os picos e abismos da Cordilheira dos Andes compõem uma imagem acurada da dramática situação do Peru nos últimos tempos. Em vinte anos, todos os sete presidentes caíram em desgraça. Quatro passaram um tempo na cadeia, sendo que o mais antigo, Alberto Fujimori, está lá até agora, e um, Alan García, suicidou-se quando a polícia chegou para prendê-lo. Em comum, comprovações de corrupção desenfreada, alimentada em parte pelo propinoduto internacional montado pela notória empreiteira Odebrecht. Na movimentada trajetória criminal da classe política peruana, Martín Vizcarra, ex-governador de uma província remota, assumiu a Presidência em 2018 porque era o vice de Pedro Pablo Kuczynski e o chefe renunciou — isso mesmo, atolado em denúncias de irregularidades. Vizcarra tentou mexer no vespeiro da corrupção, foi enrolado, ele também, em atividades suspeitas e acabou desencadeando agora um eletrizante troca-troca no Executivo: em uma semana, sofreu impeachment, foi substituído pelo impopular presidente do Congresso, Manuel Merino, que, por sua vez, obrigado pelos próprios ex-correligionários, cedeu o posto a um deputado de primeira viagem, Francisco Sagasti. Ufa!
O impedimento de Vizcarra levou às ruas a população farta das falcatruas que regem a vida política do país há décadas. Merino, o efêmero, rebateu os protestos com furor repressivo que resultou em pelo menos dois mortos. Entra Sagasti, 76 anos, engenheiro e ex-funcionário do Banco Mundial apelidado Dom Quixote por ostentar um cavanhaque grisalho, o único a se apresentar para a vaga. A insatisfação dos peruanos atualmente abarca todos os três poderes, mas, deles, o alvo de maior desdenho popular, disparado, é o Congresso. O atual tomou posse em janeiro, sob impacto de um plebiscito, parte da luta anticorrupção, que limitou os cargos eletivos a apenas um mandato.
A consequência foi duplamente negativa: afastou políticos com visão de longo prazo e estimulou a criação de uma infinidade de partidos e candidatos oportunistas, de olho na imunidade parlamentar. “Dos 130 parlamentares, 68 estão sob investigação. A esperança de arquivar denúncias com certeza motivou o impeachment de Vizcarra”, aponta o cientista político Francisco Clemente Rodríguez, da Pontifícia Universidade Católica do Peru. O presidente afastado ainda esperneia. Tendo sido alvo de uma lei arcaica que permite ao Congresso pronunciar o chefe do Executivo “moralmente incapacitado”, levou o caso ao Tribunal Constitucional. “É impensável que o mesmo Congresso que nos mergulhou na crise dê uma solução para ela”, declarou o ex-presidente, que havia prometido não sair candidato na eleição marcada para 11 de abril e enfrentar as acusações contra ele nos tribunais.
A mobilização popular dos últimos dias se deve, segundo especialistas, menos à popularidade de Vizcarra e mais à frustração com a classe política. “Os fracassos na economia e na luta contra a corrupção aprofundaram desigualdades na sociedade, agravadas ainda mais pela pandemia”, diz o cientista político Jaime Zelada Bartra, da Universidad Nacional Mayor de San Marcos. No começo do ano, com o PIB e o consumo em alta, o Peru reagiu ao novo coronavírus fazendo a lição de casa: impôs uma quarentena draconiana, montou uma rede de informações confiáveis e preparou os hospitais para a crise. Não funcionou — a classe média que o boom econômico forjou, quase toda ela proveniente do mercado informal, acabou engolida pela onda pandêmica. Boa parte voltou para seus vilarejos, empobrecida e sem recursos médicos, e o país contabiliza 940 000 casos e 35 300 óbitos — a terceira maior taxa de mortalidade do mundo. A previsão do FMI é que a contração do PIB peruano chegue a 13,9% neste ano. Francisco “Quixote” Sagasti, o presidente da vez, vai encontrar muitos moinhos de vento pela frente. Se não perder o cargo.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714