Peronismo enfrenta grandes desafios para triunfar nas eleições argentinas
A despeito da vitória momentânea, o clima no quartel-general da Unión por La Patria, coalizão que sustenta a candidatura de Massa, é de apreensão e cautela
Segunda maior cidade da Argentina, onde 1,8 milhão de pessoas — a maioria descendentes de bolivianos — se apertam em casebres espalhados por centenas de favelas, La Matanza, a 40 quilômetros do centro de Buenos Aires, é um dos 135 municípios do conurbano, como é conhecido o cinturão em torno da capital. Ali, o peronista Sergio Massa obteve 52% dos votos nas eleições presidenciais de domingo 22, mais do que o dobro de seu adversário direto, Javier Milei, com quem vai disputar o segundo turno, em 19 de novembro. “É hora de assegurar nossos direitos”, resume Dolores Quispe, 42 anos, que trabalha de faxineira e optou por manter os que estão no poder. La Matanza é o retrato acabado da impressionante resiliência do peronismo, movimento político que mais acumula vitórias eleitorais em todo o mundo democrático e que, neste primeiro turno, voltou a exibir sua musculatura, empurrando o ministro de uma economia devastada para o primeiro lugar em número de votos. “É um país com uma mitologia”, definiu o ex-presidente uruguaio José Mujica sobre as singularidades da Argentina — segundo ele, “uma coisa indecifrável”.
Eleitoras de baixa renda, como Dolores, ajudam a entender por que cidadãos que atravessam uma inflação de 138% e viram o dólar disparar desde o início do ano decidiram dar a Massa 36% dos votos, contra 30% do ultraliberal Milei, o desconhecido que disparou nas preferências nos últimos meses e aparecia como favorito. Nas últimas semanas, a campanha do ministro martelou insistentemente os riscos de que o amplo colchão de benefícios sociais e a política de subsídios de até 90% nas tarifas de serviços públicos se tornassem alvos da motosserra que Milei gosta de exibir em seus comícios, castigando o bolso dos mais pobres. O discurso surtiu efeito, mobilizando seus tradicionais apoiadores a engolir as ressalvas e votar no candidato. “O peronismo tem grande compromisso com a unidade e com a formação de frentes”, resume Daniel Scioli, embaixador da Argentina no Brasil, que protagonizou a única derrota do movimento à Presidência dos últimos 22 anos, em 2015, por apenas 2 pontos de diferença.
A despeito da vitória momentânea, o clima no quartel-general da Unión por La Patria, coalizão que sustenta a candidatura de Massa, é de apreensão e cautela. Enquanto segue enfatizando as excentricidades do adversário — “aconselha-se” com seus três cachorros, tem visões, pratica sexo tântrico — para tentar derreter o entusiasmo por suas propostas, o ministro tenta agora dar uma guinada à direita com o propósito primordial de angariar os 23% de votos dados a Patricia Bullrich, candidata da centro-direita comandada pelo ex-presidente Mauricio Macri. Depois de ampliar os gastos do governo em quase 2% do PIB e distribuir benesses na campanha, medidas típicas do populismo peronista, Massa agora deu um duplo twist carpado e passou a prometer para o ano que vem um orçamento enxuto, quem sabe até um superávit. “Não vamos punir os mais pobres, mas acabar com subsídios a setores empresariais que chegam a 4%”, garante Gustavo Pandiani, um de seus assessores mais próximos.
Em outro lance ousado e inesperado, fez seu candidato à prefeitura de Buenos Aires, Leandro Santoro, segundo colocado, abandonar a disputa pelo segundo turno, na prática elegendo Jorge Macri, primo do ex-presidente, que teve 49% dos votos. Apesar desses gestos, vai ser difícil cooptar macristas, inimigos figadais dos peronistas — na quarta-feira 25, Bullrich, em coletiva, anunciou formalmente seu apoio, de nariz tampado, a Milei. “A urgência nos desafia a não sermos neutros diante do perigo da continuidade do kirchnerismo com Sergio Massa”, justificou. O próprio Macri sinalizou, em plena campanha, que poderia apoiar um eventual governo do cabeludo candidato, em simpósio na Universidade Harvard — muito embora sua ala desconfie do plano de dolarização de Milei e se arrepie diante de seu temperamento intempestivo. “Ele só ouve a si próprio e aos seus cachorros”, diz um político da cúpula da centro-direita.
Milei, por sua vez, também se prepara para rever posturas e se tornar mais palatável. Na avaliação de sua equipe, ele abraçou com ímpeto excessivo ideias da extrema direita que não foram bem-aceitas pela sociedade argentina, entre elas a liberação de armas para a população e a proibição do aborto, legalizado no país. Também é consenso a necessidade de conter manifestações de radicais como Lilia Lemoine, influencer próxima de Milei que conquistou uma vaga na Câmara dos Deputados e defende um projeto de lei para desobrigar os homens de assumirem a paternidade dos filhos, em caso de gravidez não desejada. Em outro lance mal calculado, Milei declarou que o papa Francisco, querido entre seus conterrâneos, se rendia ao comunismo ao abraçar a justiça social. “Precisamos afinar o discurso e mostrar que ele é incisivo, mas não louco”, avalia um assessor.
A disputa com Milei acontece em um cenário de extremo desgaste do atual governo, presidido por Alberto Fernández e comandado de fato, por um bom tempo, por Cristina Kirchner, capaz de pôr à prova a potente máquina peronista. Desde que se elegeu pela primeira vez, em 1945, o coronel Juan Domingo Perón, com a ajuda da mulher, Evita, aglutinou em torno de si representantes de diversos movimentos ligados à classe trabalhadora, como sindicalistas, anarquistas, socialistas, radicais e nacionalistas. Cinco décadas após sua morte, em 1974, o balaio de gatos do Partido Justicialista, nome oficial do movimento, ampliou-se consideravelmente, obrigando as diversas correntes a cortar um dobrado para contornar conflitos e impedir que as rixas comprometam a legenda. “Quem ganha conduz, quem perde acompanha. Eis um princípio norteador do peronismo”, explica Sergio Friedemann, cientista político da Universidade de Buenos Aires e especialista no fenômeno. Fernández e Kirchner, rivais declarados na corrida para lançar a Argentina no abismo econômico, estremeceram esse postulado. Sobrou para Massa — que faz de tudo para se distanciar da dupla — nadar contra a corrente e manter o peronismo à tona na eleição do menos pior que se prenuncia para novembro.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865