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Um sistema em xeque

Mais uma fragorosa derrota de Boris Johnson expõe o envelhecimento do parlamentarismo, que vem sendo atropelado pelos extremismos no mundo todo

Por Kátia Mello
Atualizado em 4 jun 2024, 15h36 - Publicado em 27 set 2019, 06h55

De derrota em derrota, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson, que assumiu o cargo há dois meses, vai se descabelando cada vez mais. Esta agora foi, além de fragorosa, inédita. Em decisão unânime, os onze juízes da Suprema Corte, que normalmente fogem das controvérsias políticas como o diabo da cruz, declararam ser “ilegal, nula e sem efeito” a suspensão do Parlamento por cinco semanas organizada por ele. Entenderam que o primeiro-ministro agiu de má-fé e ofereceu argumentos frágeis para o ato, quando sua intenção verdadeira era impedir os parlamentares de “exercer suas funções constitucionais” até as vésperas do prazo para o país deixar a União Europeia, em 31 de outubro. Boris, como todo mundo o chama, seguiu o ritual de apresentar sua intenção a Elizabeth II, que é quem formalmente suspende os trabalhos do Legislativo. Ou seja: ainda por cima, enganou a rainha. O Parlamento reabriu as portas na quarta-feira 25, e o atribulado premiê precisou voltar correndo de Nova York, depois de fazer na Assembleia-Geral da ONU um confuso discurso repleto de reflexões filosóficas sobre os avanços da tecnologia.

O retorno dos parlamentares ao trabalho não muda em nada a confusão do Brexit, que não sai do lugar apesar de várias votações e uma troca de governo. A maioria dos legisladores se mantém contra um divórcio sem acordo, Boris pouco avançou na negociação com o bloco e, para onde quer que se olhe, tudo continua como antes: travado. A única providência mais ou menos certa no futuro é a convocação de eleições, com resultados imprevisíveis — na votação para o Parlamento Europeu, em maio, os dois partidos que servem de sustentação para o berço do parlamentarismo, o Conservador e o Trabalhista, se saíram muito mal, perdendo para agremiações menores. Acredita-se que na disputa nacional a briga continuará firme entre tories, conservadores, e whigs, trabalhistas, como sempre, com as siglas menores como coadjuvantes, mas a divisão de forças dela resultante provavelmente não será a mesma. Os dois partidões britânicos patinam no terreno escorregadio da política atual, em que a ascensão dos extremistas e dos verdes está levando ao desmantelamento das alianças tradicionais.

O sistema parlamentarista nasceu no Reino Unido nos anos 1200, com o propósito de limitar ou extinguir o poder dos monarcas. Para que ele funcione bem, é preciso que o governo se alterne entre dois partidos fortes, que formam alianças com os menores para obter maioria no Parlamento. Essa ordem estabelecida degringolou na Câmara dos Comuns, que congrega os 650 legisladores eleitos e decide os destinos do país, quando parte dos tories se uniu aos whigs na rejeição ao Brexit, uma proposta que o Partido Conservador apresentou, aprovou e depois não soube como implementar. “Os únicos interessados no divórcio da UE eram os fundamentalistas conservadores. Em vez de o partido se livrar deles ou forçá-los a se conformar em fazer parte do bloco, foi cedendo até convocar um referendo sobre o assunto”, analisa o sociólogo John FitzGibbon, do Woods College de Massachusetts, nos Estados Unidos. A crise se instalou, o Parlamento britânico virou campo de guerra e a reputação das duas agremiações naufragou.

Os partidos tradicionais estão em baixa não só no Reino Unido, mas por toda parte, e essa reviravolta tem repercussão dramática nos países que adotam o sistema parlamentarista. Na Espanha, onde se revezaram por décadas o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o Partido Popular (PP), o movimento separatista catalão ergueu a cabeça e rachou a organização política estabelecida, abrindo espaço para siglas menores com plataformas de apelo popular. A incapacidade de estabelecer alianças resultou em três eleições em quatro anos, e a quarta já está marcada: como o socialista Pedro Sánchez não conseguiu formar um governo, os espanhóis, cansados de votos, retornam às urnas em 10 de novembro. “Para que o sistema parlamentar funcione, é preciso que a maioria dos partidos nele representada aceite certos princípios básicos. A radicalização do debate nas redes sociais favorece a eleição de extremistas, que têm como agenda única o constante ataque às instituições”, diz Igor Lukes, professor de história da Universidade de Boston.

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IMPASSE - Sánchez, da Espanha: a quarta eleição em quatro anos (Pierre-Philippe Marcou/AFP)
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Na Itália, onde todos os partidos conhecidos derreteram nas urnas, os novatos que venceram as últimas eleições — Matteo Salvini, da ultradireitista Liga, e Luigi Di Maio, do populista Movimento 5 Estrelas (M5S) — formaram uma fragilíssima coalizão de governo intermediada por um primeiro-ministro independente, Giuseppe Conte, uma espécie de babá dos outros dois. Em agosto, Salvini caiu fora e tentou dar um golpe: convocar eleições e, se tudo desse certo, assumir o governo sozinho. Deu errado. Conte está de volta, agora pajeando Di Maio e outro desafeto, Matteo Renzi, do Partido Democrático, colcha de retalhos que reúne o que sobrou de diversas siglas de centro e de esquerda. A probabilidade de acabar em pizza é enorme. Israel padece no momento de seu surto próprio de parlamentarismo à deriva: a segunda eleição do ano foi inconclusiva, o mesmo Benjamin Netanyahu foi encarregado de formar uma coalizão de governo e uma terceira votação, a partir de janeiro, se delineia no horizonte.

Entre 2010 e 2011, a Bélgica levou exatos 541 dias para formar um governo, e as coalizões no país desde então são frágeis e duram pouco. Mesmo nas nações onde o revezamento bipartidário continua sólido e não dá sinais de esgotamento, como a Holanda e a Alemanha, a influência dos nanicos (cada vez menos nanicos) sacode parlamentos, dificulta votações e obriga a convocação de eleições com frequência inusitada. “Cada país tem suas características e problemas, mas as dificuldades do sistema parlamentar são comuns a todos. O mundo mudou. Se os partidos tradicionais não mudarem com ele, serão descartados, e as consequências, imprevisíveis”, alerta FitzGibbon. No momento em que a própria democracia vem sendo chacoalhada por ventos populistas e autoritários, causa arrepios a perspectiva de que o parlamentarismo — a expressão mais civilizada dela — não consiga se reinventar e sobreviver aos novos tempos.

Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654

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