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Parentes de vítimas do nazismo recebem objetos confiscados 80 anos depois

Arquivos Arolsen buscam descendentes para devolver itens roubados na Polônia entre 1943 e 1944 — não pelo valor pecuniário, mas sobretudo pelo simbolismo

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 28 jun 2024, 20h11 - Publicado em 22 jun 2024, 08h00

No fim da Segunda Guerra Mundial, a Polônia invadida e ocupada pela Alemanha nazista foi palco de dois eventos históricos, intensos e sangrentos, no intervalo de pouco mais de um ano. Em abril de 1943, em um ato heroico de resistência, residentes judeus do Gueto de Varsóvia se levantaram contra os invasores. Entre 1º de agosto e 2 de outubro de 1944, a capital polonesa foi novamente palco de uma batalha assimétrica e covarde. O chamado Exército da Pátria enfrentou sem recursos as forças alemãs, mais numerosas, mais bem equipadas e treinadas com esmero. Apesar de um início promissor na defesa de casas e vidas, a Wehrmacht de Hitler massacrou os revoltosos e destruiu grande parte da cidade em retaliação. Pelo menos 150 000 combatentes e civis morreram. Milhares de sobreviventes foram enviados para campos de concentração, onde tiveram seus pertences pessoais confiscados.

O Levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, e a Revolta de Varsóvia, em 1944, deixaram cicatrizes profundas nas testemunhas daqueles eventos e, claro, em seus descendentes. É capítulo que começa a ser revisitado. Na Europa, os Arquivos Arolsen, centro internacional para preservação da memória das vítimas do nazismo, acabam de lançar uma campanha para localizar os descendentes dos donos dos objetos roubados pelos invasores e esclarecer o destino dos familiares. A ideia é fazer com que itens possam ser recuperados não pelo valor pecuniário, mas sobretudo pelo simbolismo. É o caso, por exemplo, do par de anéis e um relógio de bolso devolvidos aos parentes de seu dono, registrado como Josef Kryncewicz. De acordo com pesquisas iniciadas em 2020, trata-se na verdade de Józef Hryncewicz, detido em 1944, em Varsóvia, e depois enviado para os campos de concentração de Stutthof e Neuengamme, na Alemanha, onde seria assassinado em março de 1945. É o caso do anel com brilhantes que pertenceu a Zofia Strusi.

DE BOLSO - Relógio de Józef Hryncewicz: item resgatado do campo de Neuengamme
DE BOLSO – Relógio de Józef Hryncewicz: item resgatado do campo de Neuengamme (Arolsen Archives/International Center on Nazi Persecution//)

A preservação desses objetos pelos Arquivos Arolsen só foi possível porque o sistema dos campos de prisioneiros nazistas variava de acordo com a gestão e objetivo. Nos campos de concentração, os pertences eram coletados e colocados em salas de armazenamento. Nos campos de extermínio, os algozes recolhiam os itens das pessoas assassinadas e os distribuíam entre os oficiais. No fim da guerra, muitos desses depósitos foram saqueados. Coleções dos campos de Neuengamme e Dachau, na Alemanha, e de outros locais de detenção foram recuperadas pelos Aliados. No pós-guerra, várias organizações criadas por ex-­pri­sio­nei­ros tentaram devolver as peças aos poucos sobreviventes e famílias, mas os esforços fracassaram.

NA MÃO - Anel com brilhantes: joia de Zofia Strusi
NA MÃO – Anel com brilhantes: joia de Zofia Strusi (Arolsen Archives/International Center on Nazi Persecution//)

Restam nos depósitos dos Arquivos Arolsen cerca de 2 000 envelopes com objetos confiscados, entre fotos, cartas e joias. Desses, 100 são itens de judeus que foram deportados da capital polonesa depois da ofensiva dos resistentes. “Naquela ocasião, as pessoas já não tinham quase nada”, diz Tania de Luca, professora de história na Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Tudo que elas acumulavam de valioso tinha sido vendido ou confiscado.”

LEMBRANÇAS - Envelopes preservados: fragmentos da vida
LEMBRANÇAS - Envelopes preservados: fragmentos da vida (Arolsen Archives/International Center on Nazi Persecution//)

A recuperação dos fragmentos de vida não representa apenas reparação histórica, o que já seria extraordinário. Tampouco pode ser traduzida como consolo, bálsamo para as camadas de cicatrizes alimentadas pelo tempo. O passo é sinônimo de respeito à memória de quem pagou com a existência por um preconceito abjeto e uma intolerância inaceitável. É o resgate da resiliência humana e da relevância de nunca esquecer o Holocausto, para que não se repita. “É uma forma de fazer com que os cidadãos cruelmente assassinados, por ordem de uma política de Estado, deixem de ser mais um número entre os 6 milhões de judeus assassinados e se tornem pessoas novamente”, diz a professora Tania. Vale repetir à exaustão a frase do escritor e ativista Elie Wiesel (1928-2016), Prêmio Nobel da Paz de 1986, que passou um tempo nos campos de Auschwitz e Buchenwald: “Indiferença para mim é a personificação do mal”.

Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898

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