Parceria improvável: esquerda e extrema direita se unem contra governo da França
Premiê disse que usaria manobra constitucional para aprovar orçamento de 2025, devido a impasse no parlamento, provocando ira nos dois lados da oposição
É quase certo que o governo da França vai cair nesta semana. Na segunda-feira 2, tanto o bloco de esquerda na Assembleia Nacional, a Nova Frente Popular (NFP), que reúne legendas mais centristas às radicais, quanto o partido de extrema direita Reagrupamento Nacional (RN), de Marine Le Pen, apresentaram cada um sua moção de desconfiança contra o primeiro-ministro francês, Michel Barnier (centro-direita). Escolhido pelo presidente Emmanuel Macron para o cargo há apenas dois meses, ele virou alvo de uma parceria improvável: a extrema direita já disse que vai apoiar a moção da esquerda contra o governo.
“Os franceses estão fartos”, disse Le Pen a repórteres no parlamento. Para ela, Barnier piorou as coisas e precisa ser expulso.
Salvo uma grande reviravolta de última hora, a frágil coalizão de Barnier se tornará o primeiro governo francês a cair por um voto de desconfiança desde 1962 (naquele ano, o alvo da medida foi o então premiê Georges Pompidou, quando Charles de Gaulle era presidente). Tal colapso vai ser mais um chacoalhão para uma Europa em crise, depois que a Alemanha também aprovou uma moção semelhante para tirar o atual chanceler, Olaf Scholz, do poder – isso tudo semanas antes de Donald Trump, conhecido pela postura isolacionista e protecionista na política externa, retornar à Casa Branca.
Juntos, os deputados do RN e da NFP têm votos suficientes para derrubar Barnier. No parlamento dividido (resultado de eleições convocadas por Macron de forma antecipada), a coalizão de esquerda ocupa a maioria das cadeiras (182 de 577), e a extrema direita é a terceira maior força do parlamento, com 143 assentos. Enquanto isso, os centristas de Macron têm 167, contando com o apoio dos Republicanos de Barnier. Le Pen já confirmou que seu partido votará a favor da moção de desconfiança da NFP, além do próprio projeto do RN. A votação está prevista para quarta-feira, 4, às 16h (12h em Brasília).
Manobra constitucional
A crise política ocorre no contexto da tentativa de aprovação do orçamento de 2025. Os dois blocos de extremos opostos do espectro político decidiram colocar um basta ao governo atual depois que Barnier confirmou suas intenções de usar uma manobra constitucional para passar por cima da Assembleia Nacional e aprovar o plano de gastos sem o apoio dos deputados. Isso porque algumas concessões de última hora se mostraram insuficiente para ganhar o apoio do RN ao orçamento proposto pelo governo.
“Diante dessa enésima negação da democracia, censuraremos o governo”, disse Mathilde Panot, do partido de extrema esquerda França Insubmissa, um dos pilares da NFP. “Estamos vivendo um caos político por causa do governo de Michel Barnier e da presidência de Emmanuel Macron.”
Barnier, por sua vez, apelou que os deputados não apoiem o voto de desconfiança. “Estamos na hora da verdade… Os franceses não nos perdoarão por colocar nossos interesses individuais antes do futuro do país”, disse ele.
O governo do premiê de centro-direita, sem maioria na Assembleia Nacional, dependia do apoio do RN para sua sobrevivência. O projeto de lei orçamentária, que busca conter o crescente déficit público da França por meio de 60 bilhões de euros (cerca de R$ 382 bilhões) em aumentos de impostos e cortes de gastos, rompeu a aliança frágil. Os dois lados culparam-se mutuamente pelo fracasso nas negociações sobre o plano de gastos, dizendo que fizeram todo o possível para chegar a um acordo.
O que acontece em seguida?
Se o voto de desconfiança derrubar o premiê, Barnier terá que apresentar sua renúncia. Macron, porém, pode pedir que ele e seu governo permaneçam no mesmo lugar, em uma função interina, para lidar com os trâmites do dia a dia enquanto ele busca um novo nome para o posto. Pelo caos atual, isso pode muito bem acontecer apenas no ano que vem.
Uma das opções do presidente francês seria nomear um governo de tecnocratas, sem programa político, o que pode ajudar o próximo primeiro-ministro a sobreviver a um voto de desconfiança. Em qualquer caso, não pode haver novas eleições parlamentares antes de julho de 2025.
No que diz respeito ao orçamento, se o parlamento não aprovar um projeto de lei até 20 de dezembro, o governo interino pode invocar aquela manobra constitucional de Barnier (baseada em um artigo da Constituição que permite ao governo aprovar medidas sem votação dos deputados) para passar a medida por decreto.
No entanto, isso seria arriscado. Não é certo que um governo interino pode usar tais poderes, e isso certamente desencadearia críticas duras da oposição.