Pacificação instável: acordo entre Irã e Israel não afasta riscos de novos conflitos
Depois de entrar na guerra, os EUA selam um cessar-fogo. Mas segue incerto o cenário em que todas as partes celebram a vitória

Quando mísseis israelenses riscaram os céus de Teerã em 13 de junho, em um ataque que ingressará nos livros de história por sua envergadura e os elevados riscos de um conflito de grandes proporções, o governo americano apressou-se em informar ao mundo que não tinha nada a ver com a investida de seu principal aliado no explosivo Oriente Médio. Parece não haver dúvida: o presidente Donald Trump estava, sim, avisado dos planos de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, que alegava a necessidade de pôr fim às ambições nucleares de seu arqui-inimigo na região e, se tudo desse certo, ainda derrubar o regime fundamentalista dos aiatolás. Ao certificar-se de que o início da operação havia sido bem-sucedido, Trump capturou os holofotes para si, passando a exaltar os “nossos” feitos.
No sábado 21, ele deu um decisivo passo adiante e, em exibição de força bélica que enalteceu com as usuais e grosseiras letras maiúsculas na Truth Social, sua rede social, emitiu sinal verde para o bombardeio das três principais bases do programa atômico iraniano, pondo os Estados Unidos no palco da guerra que já sacudia o tabuleiro da geopolítica global e se anunciava longa. Não foi o que ocorreu, e depois de doze dias deu-se a trégua possível. Trump, o pacifista incendiário, informou um cessar-fogo costurado por ele.

A partir desse ponto, cada lado da breve batalha anunciou vitória, a começar pelo ocupante do Salão Oval. “Nosso ataque encerrou a guerra. Não quero usar o exemplo de Hiroshima, mas foi essencialmente a mesma coisa”, comparou Trump, mantendo o tom sempre épico. Netanyahu, desgastado pela campanha que capitaneia na Faixa de Gaza, ganhou apoio maciço da população israelense na estocada contra o Irã e gabou-se: “Mandamos o programa nuclear iraniano pelo ralo”. O Irã, por sua vez, também se revestiu de orgulho. “Demos um duro tapa na cara dos Estados Unidos”, declarou o líder supremo, Ali Khamenei, sobre as bombas lançadas, na véspera da pausa, contra a base americana no Catar. O país avisou ainda que pode restaurar “qualquer dano sofrido” em suas instalações e celebrou o fato de o regime, há mais de três décadas comandado com mãos de ferro pelo aiatolá, ter ficado de pé.

Como é comum na dinâmica das guerras, será preciso tempo para entender as cicatrizes e tentar acompanhar os desdobramentos. Longe das bravatas da arena política, porém, há um par de convicções: o objetivo de dizimar por completo o poderio nuclear iraniano, como Trump e Netanyahu alardearam, ao que parece, não foi atingido e o Oriente Médio, cindido por nações que não se bicam, continua assentado sobre um barril de pólvora. O próprio primeiro-ministro israelense já disse que os olhos se voltarão de novo para Gaza, onde desde os ataques terroristas do Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, se desenrola um drama humanitário que ceifou a vida de cerca de 60 000 palestinos e deixou 20% da população no enclave exposta à fome e inanição, segundo a ONU. “A paz de Trump é uma quimera. Estamos diante de um equilíbrio frágil”, disse a VEJA o cientista político Sean McFate, pesquisador do think tank Atlantic Council.
A fragilidade brotou cristalina apenas seis minutos depois do cessar-fogo selado entre Israel e Irã entrar em vigor, às 7 da manhã de terça-feira, dia 24, no fuso do Oriente Médio. Foi quando os iranianos despacharam dois mísseis contra Tel Aviv. Nos bastidores, Trump fez o que pôde para dissuadir Netanyahu de revidar, mas de nada adiantou. Às 7h30, uma bomba israelense destruiu a instalação de um radar perto de Teerã. Em nova ligação telefônica, o americano repreendeu Netanyahu, com quem vira e mexe se estranha. Em público, boquirroto, bem a seu estilo topetudo, foi direto ao ponto, como se fosse o campeão da diplomacia: “Não estou feliz com Israel”.

Seria o caso também de demonstrar alguma infelicidade com seu próprio desempenho. Um documento do Departamento de Defesa americano fez um balanço dos dias de conflito que desagradou a Casa Branca e adicionou uma dose de incertezas ao cenário. Segundo o relatório, o programa nuclear do Irã teria sofrido apenas seis meses de atraso. Além disso, pelo menos parte do estoque iraniano de urânio enriquecido já havia sido transferida para locais secretos antes dos bombardeios e, portanto, ficou a salvo das bombas (Trump, é claro, nega). Oficialmente, Mohammad Eslami, o chefe da indústria nuclear da nação persa, afirmou ainda avaliar os estragos, mas já se mexe para a recuperação de suas instalações. Com o conhecimento acumulado desde os anos 1970, o país tem expertise de sobra para tal. “Talvez agora os iranianos julguem essencial o desenvolvimento de uma bomba atômica, o que, ao que tudo indica, ainda não têm, como fez a Coreia do Norte”, diz Sandy Tolan, especialista em Oriente Médio da Universidade do Sul da Califórnia.

As dubiedades, e só o tempo dirá como de fato os humores serão acalmados, permitem que Trump, ao menos por ora, extraia do episódio munição para se firmar no picadeiro mundial como grande “conciliador” — e, quem sabe, receber um implausível e constrangedor Nobel da Paz, movido a tiros. Já há até indicações. Trump sustenta que o ataque ao Irã era necessário, mas conseguiu executá-lo cirurgicamente graças às superbombas de 13 toneladas que se infiltraram nas dependências nucleares incrustadas nas montanhas de Fordow, Natanz e Isfahan. “Ele aproveitou para exibir o poderio bélico dos Estados Unidos, mandando mensagem aos adversários China e Rússia”, afirma o especialista em relações internacionais Jeff Sosland, da American University.
Na quarta-feira 25, o americano fez aparição em circuito internacional, durante a cúpula na Holanda da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar que anda esvaziada em razão do desinteresse de Trump em colocar ali mais dinheiro. Colheu elogio do secretário-geral, Mark Rutte, que lhe agradeceu pela “decisiva ação” no Irã, e ainda arrancou dos países europeus a promessa de investimento de 5% de seus PIBs em defesa até 2035 — o que não faz pensar em um planeta exatamente mais pacífico. Internamente, o envolvimento dos Estados Unidos na complexa teia do Oriente Médio caiu mal. De acordo com pesquisa Reuters/Ipsos, a popularidade de Trump, que caminhava em rota ascendente, passou de 44% para 41% em poucos dias. “Ao encerrar o conflito rapidamente, ele evita o pior em termos de queda de popularidade”, diz Patrick James, autor do livro Crises e Guerras.

A entrada americana no conflito contrariou expoentes do Maga, movimento idealizado por Trump e alimentado pela ideia de uma América grande, onde não cabe se deixar sugar pela guerra dos outros. A experiência americana em meter a colher em duelos travados nas bandas do Oriente Médio nunca deu certo, custando vultosas cifras e vidas sem o resultado esperado. Em 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque a mando de George W. Bush e derrubaram Saddam Hussein, alegando a presença de armas de destruição em massa que nunca existiram. O colapso do reinado do ditador veio seguido de intermináveis ciclos de insurgência. Depois dos ataques às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, Bush decidiu enviar soldados ao Afeganistão. Os líderes do Talibã, que abrigavam por lá a célula terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, foram expulsos, mas regressaram com tudo em 2021, manchando a imagem de Joe Biden.

Acabar com a teocracia iraniana, que perdura desde 1979, segue no radar de Netanyahu e também seria do agrado de Trump, mas, ao que tudo indica, ficou mais distante agora, ainda que figuras do núcleo duro do aiatolá tenham sido eliminadas. Pior que isso, o tiro pode ter saído pela culatra. “O ataque estrangeiro abre espaço para a mobilização da população ao redor de uma causa, o que deve reduzir dissidências e pode fortalecer o regime”, afirma Johan Calabrese, analista do Middle East Institute. Mas o cotidiano, que já não andava fácil em um país repressor, afundado numa esticada crise econômica, tende a piorar com o lastro de destruição deixado pelos bombardeios e com a persistência das sanções do Ocidente.
O único horizonte possível para que sejam suspensas é a volta à mesa de negociações com os Estados Unidos em torno da extinção do programa nuclear. Trump disse que os americanos têm reunião marcada com os iranianos na semana que vem, mas a chance de um consenso é altamente improvável. Isolado, o Irã ainda conta com a simpatia de países do chamado Sul Global, como o Brasil (leia o quadro), e tem como aliados a China de Xi Jinping e a Rússia de Vladimir Putin. “O problema é que as duas potências estão envolvidas com suas próprias questões e não têm interesse em se desgastar ajudando o Irã”, diz Mark Katz, especialista em segurança internacional da Universidade George Mason.

A trégua já fez os preços do petróleo, que haviam disparado, recuar a patamares pré-conflito. Mas o episódio reacendeu um temor que frequentemente ronda o Estreito de Ormuz: o fechamento da passagem de 50 quilômetros de largura controlada por Irã e Omã, por onde passam cerca de 20% do petróleo e gás que abastecem o planeta. O Parlamento iraniano chegou a aprovar a medida, mas o cessar-fogo levou à suspensão do plano, ao menos por ora. “Seria um desastre”, diz Ahmed Ben Salem, analista do banco Oddo BHF. “Apesar da ascensão do petróleo de xisto nos Estados Unidos, os países do Golfo continuam indispensáveis para o fornecimento mundial.” É verdade que os planos de Netanyahu ao atacar seu maior rival na região não se concretizaram, e possivelmente nem ele próprio acreditava que o Irã fosse sair dessa sem programa nuclear e sem aiatolás. Mas o fato é que conseguiu, em alguma medida, retirar as questões humanitárias de Gaza do foco, assim como sua inépcia no resgate dos reféns até hoje nas mãos do Hamas, e baixou a poeira dos radicais ortodoxos que compõem sua coalizão e ameaçaram, dias antes dos bombardeios contra Teerã, derrubá-lo. Também demonstrou a supremacia militar israelense — dos cerca de 500 mísseis disparados pelo Irã, apenas 6% atingiram áreas urbanas, sendo os outros neutralizados ainda no ar. Foram 28 os mortos do lado de Israel e 640 os do Irã. “Ele ganhou força e fôlego para continuar no poder”, afirma Mitchell Barak, que trabalhou com Netanyahu na década de 1990. Pela primeira vez em 2025, mais israelenses disseram preferi-lo como líder, segundo uma aferição que elencou vários nomes, feita logo depois do cessar-fogo.

É um pequeno alívio para o líder enrolado com a questão palestina, a mais intrincada do Oriente Médio, que segue sem resolução à vista. A situação em Gaza e na Cisjordânia continua em aberto e, desde os ataques do Hamas, a utopia de dois Estados parece cada vez mais isso: uma utopia. Do lado americano, Trump esbarra com um obstáculo em seu projeto de normalizar as relações entre o aliado Israel e os Estados árabes via Acordos de Abraão, que têm imenso potencial de gerar vultosos negócios para todas as partes. Em mais um sinal de que o cessar-fogo se finca sobre terreno movediço, o Parlamento iraniano aprovou, na quarta-feira 25, um projeto de lei para interromper a cooperação com a agência de fiscalização nuclear da ONU, deixando entrever as ambições do país e indicando que a trilha diplomática ficou mais complicada. As próximas semanas dirão para que serviu — se é que serviu para alguma coisa — a guerra de doze dias. E convém lembrar: se é autorizado a cada uma das três partes gritar ser vitoriosa, sem clareza, é porque também houve derrotas.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição nº 2950