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Os efeitos para o Brasil de uma possível guerra entre EUA e Irã

A economia e a diplomacia do país não têm nada a ganhar com um conflito nos próximos meses — aliás, podem perder muito no curto prazo

Por Machado da Costa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Denise Chrispim Marin Atualizado em 27 jan 2021, 09h53 - Publicado em 10 jan 2020, 06h00

Mesmo a distância, a probabilidade de um país escapar ileso de um conflito que envolve a maior potência militar do planeta e um poderoso líder regional localizado no Oriente Médio é nula. A situação se torna ainda mais delicada no caso de uma nação cuja economia, depois de patinar em anos de estagnação, se prepara para um processo de recuperação que promete ser árduo e cheio de obstáculos. É exatamente isso que acontece com o Brasil diante da escalada de hostilidades entre Irã e Estados Unidos desde o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, em Bagdá, no dia 3 de janeiro. De imediato, o preço do petróleo no mercado internacional chegou a subir 3,1% na segunda-feira e alcançar o patamar de 71 dólares, o que levou o governo federal e a Petrobras a rever suas políticas de preços dos combustíveis para não repassar a alta nos custos às bombas de gasolina e diesel — algo que poderia comprometer o controle da inflação.

Entre o início do conflito e a quarta-feira 8, a bolsa brasileira não fechou um dia sequer no campo positivo, e perdeu quase 2% de valor de mercado desde então. O dólar, que apresentava um movimento de estabilidade desde dezembro, voltou a subir no período, o que deixou clara a tendência de retirada de recursos estrangeiros do país. Esse é um movimento preocupante, pois boa parte do projeto de recuperação desenhado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, depende da entrada de recursos aplicados por investidores estrangeiros. Em caso de crise internacional com tamanhas implicações, é justamente esse investidor quem bate em retirada de mercados emergentes e arriscados em busca de praças mais confiáveis para investir seu dinheiro. A confusão armada pelo presidente americano Donald Trump também trouxe pânico a um dos setores que têm sido esteio do PIB, a agropecuária. Apesar de o Irã corresponder a uma cota moderada das exportações brasileiras, com um total de 2 bilhões de dólares anuais, é um comprador significativo de produtos isoladamente. O país é o segundo maior comprador de milho e o quarto de carne brasileiros — itens que garantem rentabilidade e estabilidade ao agronegócio nacional.

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EMBARGO – Navio do Irã sem combustível em julho devido a sanções (João Andrade/Reuters)

Num cenário em que contendores como os Estados Unidos e o Irã trocam ameaças abertamente, o Brasil fica numa posição bastante desconfortável. De um lado estão os EUA, o segundo maior parceiro comercial do país, comprador de 26,9 bilhões de dólares em commodities e manufaturas, superado apenas pela China. Do outro está um tradicional importador de alimentos e exportador de petróleo e derivados, um mercado pujante com uma população de 81 milhões de habitantes, do qual o Brasil se aproximou nas últimas décadas e que funciona como uma espécie de avalista para operações com outros países muçulmanos — um contrato firmado com iranianos para compra de carne, por exemplo, serve de atestado de qualidade do produto brasileiro para uma série de nações islâmicas. Se fosse obrigado a escolher um dos polos, evidentemente o Brasil ficaria com os americanos — tanto pela sua importância econômica como pela identificação no que se refere a valores e princípios. Um teste dessa opção ocorreu em julho passado, quando um navio iraniano ficou encalhado em Paranaguá (PR) por não receber combustível da Petrobras, ciosa das sanções americanas. O ideal, contudo, é que decisões como essa não precisem ser tomadas. “Vivemos uma situação que exige enorme cautela sobre o que se fala e o que se faz, porque nossos interesses humanos e econômicos no Oriente Médio são enormes”, afirma o diplomata Marcílio Marques Moreira, embaixador do Brasil em Washington na época da Guerra do Golfo, em 1991.

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A notícia do assassinato de Soleimani caiu como uma bomba no Palácio do Planalto. Num primeiro momento, a principal preocupação do governo foi com ações terroristas em território nacional. Temia-se no círculo mais próximo do presidente Jair Bolsonaro que a região da Tríplice Fronteira, entre Brasil, Argentina e Paraguai, se transformasse em um reduto de milicianos xiitas prestes a praticar ataques contra alvos inimigos pelo continente. Parte do raciocínio vinha do fato de Soleimani ser visto pelo governo brasileiro como o cérebro por trás de duas ações terroristas realizadas na região — um ataque à embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992, e a explosão de um carro-bomba em frente a uma instituição filantrópica judaica na mesma cidade, em 1994. Logo depois do ataque americano que matou o general iraniano, Bolsonaro convocou ao seu gabinete os ministros Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu assessor internacional, Filipe Martins. Na conversa, decidiu-se que as justificativas de Washington seriam aceitas sem contestação.

Encerrada a reunião, Araújo retornou ao Itamaraty e determinou a redação da primeira nota oficial de seu ministério em 2020. O texto não mencionou o assassinato de Soleimani, centrou-se apenas na alegada guerra contra o terror empreendida por Trump. “O terrorismo não pode ser considerado um problema restrito ao Oriente Médio e aos países desenvolvidos, e o Brasil não pode permanecer indiferente a essa ameaça, que afeta inclusive a América do Sul”, reforçou o comunicado. O texto em nenhum momento fez referência às relações com o Irã ou ao comércio bilateral. Com o passar dos dias, e por influência de setores da economia que exportam para o país árabe, o ambiente foi mudando. Também foi fundamental a postura do ministro da Defesa, Fernando Azevedo. Numa reunião com Bolsonaro e o general Augusto Heleno, Azevedo lembrou ao presidente a relevância comercial do Irã para o Brasil e a inconveniência de um envolvimento mais direto na questão. Bolsonaro pareceu concordar e, de forma acertada, o governo saiu da condição de aliado automático para uma postura um pouco mais pragmática em relação à crise. Na terça-feira 7, em uma entrevista coletiva, Bolsonaro declarou que continuaria fazendo negócios com o país.

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Houve momentos de muita tensão durante o processo. No ritual da diplomacia, o primeiro sinal de rusga entre dois Estados surge com a convocação do embaixador estrangeiro pela chancelaria local. Foi o que aconteceu após as primeiras reações do governo brasileiro. Um dia antes do pronunciamento do presidente, a encarregada de negócios da representação do Brasil em Teerã, Maria Cristina Lopes, que no momento substituía o embaixador Rodrigo Azeredo, atendeu ao chamado do Ministério de Assuntos Estrangeiros do Irã para explicar o teor da nota do Itamaraty. Os embaixadores de outros países que não apoiaram e até criticaram Teerã — caso de Reino Unido, França e Alemanha — foram igualmente convocados para se explicar. No dia seguinte, a situação se acalmou em relação ao Brasil, e veio o pronunciamento do presidente sobre a continuidade dos negócios com o Irã. “Amigos, amigos… negócios à parte”, comemorou a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, outra que defendeu e batalhou muito por uma posição mais pragmática do governo brasileiro.

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ESPECIALIZAÇÃO –  Frigorífico voltado à exportação de carne para os países islâmicos: certificado de qualidade (Arquivo/Gazeta do Povo)

Num momento em que as atitudes imponderadas e as abordagens simplistas de questões complexas parecem ganhar terreno no planeta, é fundamental que Bolsonaro ouça as vozes equilibradas de seu governo, afastando-se daqueles que, de forma irresponsável, parecem querer ver o mundo pegar fogo. O Brasil não tem nada a ganhar com uma guerra nos próximos meses — aliás, pode perder muito no curto prazo. Dada a nossa falta de importância na diplomacia internacional, o melhor a fazer é ficar calado — e torcer muito para que a situação não evolua para um conflito armado.

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Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669

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