Os efeitos do pedido da Finlândia e da Suécia para entrar na Otan
Com essa Putin não contava: manobra dobrará a extensão da linha de fronteira colada a membros da aliança militar ocidental
Quando rasgou tratados, enfiou o pé na porta e invadiu a Ucrânia, no fim de fevereiro, o presidente russo Vladimir Putin apresentou duas justificativas inaceitáveis. Uma, insana, era a necessidade de livrar os vizinhos da “nazificação” a que eram submetidos por um governo de traidores pró-Ocidente e restaurar sua “alma russa”. Outra, também absurda mas com um esperto viés prático, era manter distância da Otan, o acordo militar que Europa, Estados Unidos e Canadá firmaram na Guerra Fria — afinal, uma fronteira de 2 295 quilômetros separa Rússia e Ucrânia e este país tem cravada na Constituição a intenção de se integrar à aliança. Passados três meses, Putin está de mãos abanando.
A tal “alma russa” dos ucranianos não cooperou e eles seguem lutando com unhas e dentes contra os invasores — nos últimos dias, perderam a devastada Mariupol, mas empurraram as tropas russas em Kharkiv para o outro lado da fronteira e, se o governo de Kiev engavetou, ao menos por ora, a entrada na Otan, a Finlândia, outra longa fronteira de 1 300 quilômetros que Moscou considerava blindada por uma política oficial de neutralidade, cedeu à preocupação com o expansionismo russo: junto com a vizinha e também neutra Suécia pediu para ingressar na aliança. De uma hora para outra, a Rússia terá o dobro de Otan (veja no mapa) grudado em seu território.
Quando a invasão se concretizou, tanto Finlândia quanto Suécia seguiam firmes na aversão a integrar a Otan e provocar Moscou desnecessariamente. No lado finlandês, contava para a manutenção do status quo a indigesta relação histórica entre os dois países: a Finlândia integrou o Império Russo até 1917, lutou duas vezes contra as forças soviéticas durante a II Guerra Mundial, acabou cedendo 10% de seu território e assinou com a URSS em 1948 um tratado de “amizade, cooperação e assistência mútua” que a isolou militarmente da Europa Ocidental — concessão que ficou conhecida como “finlandização”. Em janeiro, quando as tropas russas já se movimentavam na direção da Ucrânia, Sanna Marin, primeira-ministra finlandesa, declarou ser “muito improvável” que seu país aderisse à Otan.
No caso sueco, a política externa do pós-guerra apontou seu foco para o diálogo multilateral e o desarmamento nuclear, e a neutralidade se tornou um princípio ideológico. A invasão russa virou a mesa. “Há um antes e um depois de 24 de fevereiro. O cenário de segurança mudou completamente”, declarou a primeira-ministra sueca, Magdalena Andersson. “Não estamos com medo, mas a imprevisibilidade de Putin nos preocupa. Por isso queremos entrar na Otan”, disse a VEJA Pasi Autio, reservista de Tampere, na Finlândia.
O fim do não alinhamento militar dos dois países nórdicos é uma das maiores guinadas de política externa na Europa nos últimos anos. Informalmente, porém, a colaboração em defesa já existia, sobretudo devido ao estado de tensão provocado pela presença de armas nucleares em Kaliningrado, enclave russo na costa do Mar Báltico. Mesmo contida pelo acordo com a Rússia, a Finlândia manteve o serviço militar obrigatório e pode mobilizar rapidamente 280 000 reservistas. Na capital, Helsinque, abrigos antiaéreos visitados por turistas como atrações excêntricas são obrigatórios por lei e podem receber até 900 000 pessoas. A Suécia, por sua vez, é um dos maiores fabricantes de armas per capita do mundo — em 2021, a exportação de equipamento bélico bateu os 2 bilhões de dólares. Entrando para a Otan, os dois países ganham a proteção extra do célebre Artigo 5, que define a agressão a um como agressão a todos. “É da natureza nórdica estarmos sempre preparados”, diz Jouko Leinonen, embaixador da Finlândia no Brasil.
Esse pragmatismo se refletiu na opinião pública: em maio, o apoio à Otan triplicou para 76% na Finlândia e 60% suecos eram favoráveis à adesão. “A invasão da Ucrânia destruiu a crença profundamente arraigada de que sabíamos interpretar com precisão os objetivos e o modo de pensar russos”, explica Petri Karonen, historiador da Universidade de Jyväskylä, na Finlândia. A nova percepção é de uma Rússia revanchista e revisionista, mais perigosa do que a extinta URSS. A Otan tenta agora apressar o processo de integração (o último, da Macedônia do Norte, levou vinte meses). Como a aprovação tem de ser unânime, precisa contornar as objeções do presidente turco Recep Erdogan ao refúgio dos nórdicos a líderes curdos que acusa de terrorismo (na prática, ele quer inflar sua relevância e, de quebra, afagar o amigo Putin). A Rússia reagiu indignada à pretensão de Finlândia e Suécia e prometeu “resposta simetricamente equivalente”. “Você causou isso. Olhe-se no espelho”, rebateu o presidente finlandês Sauli Niinistö, dirigindo-se a Putin. Tradução, em carioquês castiço: perdeu, playboy.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790