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ONU mostra fragilidades em meio ao agravamento da guerra Israel-Hamas

Pressões diplomáticas abrem um corredor humanitário para o Egito, papel que o Conselho de Segurança não conseguiu assumir

Por Ernesto Neves 4 nov 2023, 08h00

No furor da reação de Israel ao ataque-surpresa do grupo palestino Hamas, que na madrugada de 7 de outubro rompeu a barreira em torno da Faixa de Gaza, trucidou 1 400 pessoas e foi embora com mais de 200 reféns, quase três semanas de bombardeios ininterruptos sobre alvos no estreito e superpopuloso território — 600 em um dia, de acordo com as Forças de Defesa Israelenses (IDF, na sigla em inglês) — foram o prenúncio do movimento decisivo: a invasão por terra. Na segunda-feira 30, tanques e comandos deram início à segunda fase da operação para aniquilar o inimigo, confirmada por imagens de satélite e pelo primeiro-mi­nistro Benjamin Netanyahu.

A crise humanitária desencadeada pelas bombas e por um bloqueio total, com cerca de 9 000 de mortos nas contas das autoridades palestinas e civis privados de água, comida e assistência médica, levou países do mundo todo a se manifestar, uns contra a violência de Israel, outros a favor do seu direito de reagir à altura e muitos misturando as duas coisas. Do Conselho de Segurança, órgão máximo da Organização das Nações Unidas, nada. Engessado pela exigência de unanimidade, a entidade guardiã da paz mundial até agora não aprovou uma única resolução relativa à guerra no Oriente Médio.

SEGUNDA FASE - Tanques israelenses se concentram na fronteira: começo da invasão
SEGUNDA FASE - Tanques israelenses se concentram na fronteira: começo da invasão (Jack Guez/AFP)

No campo de batalha, a cratera das bombas perfurou o solo de Jabalia, o maior dos cinco campos de refugiados de Gaza, matando dezenas de pessoas — segundo Israel, todos integrantes de células de combate, inclusive um comandante militar; segundo o Hamas, todos civis, entre eles sete reféns. “Será uma guerra longa e difícil”, avisou Netanyahu, destacando que os 300 000 reservistas convocados devem passar meses longe de casa. A intenção de Israel parece ser isolar gradativamente Gaza City, a maior cidade do território, e centrar a ofensiva terrestre lá, infiltrando-se no labirinto de túneis que serve de arsenal, depósito de víveres, esconderijo e quartel-ge­neral do Hamas. Nele estariam espalhados os reféns, que as forças israelenses esperam localizar e resgatar — em uma das recentes incursões, a soldada Ori Megidish, 19 anos, foi a primeira a ser libertada. Em vez de uma ação em larga escala, as IDF optaram até agora por investidas pontuais, aparentemente com o propósito de confundir o Hamas quanto aos próximos passos. “Isso também adia, pelo menos por enquanto, os combates em zonas urbanas, que são muito mais perigosos”, diz Yaakov Lappin, analista militar baseado em Israel.

Graças principalmente à pressão dos Estados Unidos e à intermediação do Catar, emirado árabe que acolhe um escritório de representação do Hamas, hospeda seu chefe político, Ismail Haniyeh, e ampara financeiramente os serviços públicos de Gaza, o Egito abriu o portão de Rafah, único ponto de fronteira do território não controlado (pelo menos em teoria) por Israel. Primeiro, permitiu a entrada de caminhões com água, remédios e mantimentos — menos de 100 por dia, muito menos do que o necessário. Depois, na quarta-feira 1º, autorizou a saída de indivíduos detentores de passaportes estrangeiros e de feridos sem condições de tratamento local. Tudo muito mais lentamente do que os envolvidos gostariam, mas foi o primeiro respiro no desespero geral que predomina em Gaza. Enquanto a diplomacia de uns poucos países trabalha para manter aberto o corredor humanitário, o Conselho de Segurança da ONU segue travado — quatro propostas de trégua, incluindo uma do Brasil, foram rejeitadas desde o início do conflito. Três dos vetos partiram da representação americana, ciosa de manter aceso o apoio do país à reação de Israel e à percepção do governo Netanyahu de que concordar com um cessar-fogo é ceder ao Hamas.

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PROTESTO - Embaixador Erdan com a estrela amarela: ele acusou a ONU de antissemitismo
PROTESTO - Embaixador Erdan com a estrela amarela: ele acusou a ONU de antissemitismo (Evan Schneider/ONU/EFE)

Ao se encerrar no fim de outubro a presidência rotativa do Brasil (autor de uma das resoluções rejeitadas) no Conselho, sem erguer algum escudo que interrompesse a chuva de bombas, o ministro Mauro Vieira, das Relações Exteriores, desabafou: “Seguimos sem conseguir agir, é uma vergonha”. O secretário-geral da ONU, António Guterres, complicou ainda mais a equação ao dizer que os ataques do Hamas não aconteceram “no vácuo” e em seguida fazer referência aos “56 anos de ocupação da Palestina”. A representação de Israel pediu sua renúncia e foi além: “Todo país honesto deveria deixar de contribuir com a ONU até que o antissemitismo termine”, declarou o embaixador Gilad Erdan, portando na lapela uma estrela de davi amarela, usada pelos nazistas para identificar os judeus nos campos de concentração da II Guerra.

Contribuiu para acirrar os ânimos a absurda escolha do representante do Irã na ONU, Ali Bahreini, para presidir o Fórum Social do Conselho de Direitos Humanos em Genebra, no início de novembro. Há uma contradição: no ano passado, o Conselho aprovou uma resolução pedindo investigação independente das denúncias de violência do governo de Teerã na repressão de manifestações de rua. E, claro, direitos humanos ali inexistem. Mas por que tanta fragilidade nas decisões? “A guerra no Oriente Médio mexe com questões profundas, como religião e etnia, em um momento em que as sociedades estão polarizadas”, resume William Doherty, professor da Universidade de Minnesota.

DISCURSO - Fidel em 1960: um ano antes de Cuba ser declarada comunista
DISCURSO - Fidel em 1960: um ano antes de Cuba ser declarada comunista (Jeff Hochberg/Getty Images)

Criado em 1946, em um contexto de aprovação geral a uma entidade garantidora da paz mundial depois da tragédia da guerra, o Conselho de Segurança da ONU é formado por cinco nações com assento permanente — Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido — e outras quinze em regime de rotatividade (o Brasil tem assento até o fim do ano). Ao contrário das resoluções da Assembleia Geral, termômetro insosso das posições dos 193 países-membros nas horas de crise, as decisões do Conselho são de anuência obrigatória por todos e devem ser aprovadas por unanimidade pelos membros permanentes, mecanismo adotado para evitar dar peso maior a um ou outro e insuflar conflitos. A Assembleia, aliás, é apenas vitrine — palco que, em 1960, recebeu Fidel Castro com pompa e circunstância, um ano antes de Cuba ser declarada um país comunista.

O Conselho, diga-se, funcionou por algum tempo, mas sem relevância contundente. O balanço das resoluções tomadas até hoje traduz as limitações do órgão — menos de duas dezenas por ano nas quatro décadas de Guerra Fria, quando EUA e União Soviética se revezavam nos vetos; o triplo no período de hostilidades amenizadas após a queda do Muro de Berlim; e, agora, brigas e vetos desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. Nos últimos anos, a ONU vem sendo pressionada a alterar as regras, mas dificilmente achará o momento certo para mudanças em um panorama de desimportância, atropelada pela crescente influência de grupos como o Brics e o G20. No mundo atual, movido pela busca por hegemonia ou, ao menos, um lugar mais luminoso ao sol, não sobra muito espaço para as Nações Unidas. E as guerras prosseguem.

Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866

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