Onda ‘woke’ ganha força, e reproduz a intolerância que diz combater
Em nome do louvável propósito de banir o preconceito da sociedade, a turma que abraça a cartilha do politicamente correto sem limites tropeça em exageros
Infiltrado no humor, na política, nos esportes, na sala de aula, no showbiz, na imprensa e, acima de tudo, no implacável tribunal das redes sociais, um elemento relativamente novo, complicado e ruidoso permeia a sociedade em boa parte do mundo: a chamada cultura woke, um jogo de golpes mortíferos que frequentemente se volta contra si mesmo. Nascida e nutrida entre os estudantes das universidades americanas de elite, um caldeirão de ideias progressistas, a onda woke (derivada de wake, acordar em inglês) tem na origem a virtuosa intenção de combater injustiças e promover maior diversidade e valorização de minorias — leque que abrange negros, imigrantes, mulheres, homossexuais e trans. Trata-se de um propósito fundamental em sociedades ainda coalhadas de preconceitos inadmissíveis.
O problema está no modus operandi dos adeptos mais intransigentes. Imbuídos de certezas absolutas, eles atiram pedras para todo lado e recorrem à internet para sumariamente cancelar todo e qualquer suspeito de desvio das bandeiras que empunham, reproduzindo por vezes, eles próprios, a intolerância que combatem. Sendo os Estados Unidos a câmara de eco do mundo, o woke se alastrou planeta afora, conquistando sobretudo os jovens, inclusive no Brasil — as buscas pelo termo na internet daqui aumentaram 1 000% nos últimos cinco anos e 267% só em 2023.
O Carnaval esteve aí, nos últimos dias, desfilando os radicalismos do woke em blocos e escolas de samba. Dentro desse receituário, cocar, penas e pintura corporal são banidos da folia por suposto desrespeito aos povos indígenas — que merecem todo o respeito, claro, mas seria isso motivo para a extinção do tradicional bloco Cacique de Ramos, do Rio de Janeiro, que samba inteiro vestido dessa forma? Fantasias de Iemanjá, padre e muçulmano também entraram no rol das proibições, por afrontar religiões. Um clássico carnavalesco que ainda resistia, homens vestidos de mulher, entrou no índex, sob o argumento de que o vasto mundo das identidades não é brincadeira, mas realidade — um ultimato ao bloco das Muquiranas, em Salvador, cuja premissa é justamente a inversão de gêneros. Nascido como “Festa dos Loucos”, na época da expansão do cristianismo na Idade Média, para dar vazão ao ímpeto de desafiar dogmas e leis e viver como se tudo fosse permitido nos três dias que antecedem as penitências da Quaresma, o Carnaval, patrulhado com lupa, adapta-se aos novos tempos.
Resumidamente, o woke é o politicamente correto (PC) — fincado no genuíno cuidado ao falar e agir para não ofender minorias — elevado à última potência. O PC também foi forjado nos alojamentos universitários americanos, nos anos 1990, só que em tom irônico — era como a turma do meio de campo se referia aos colegas mais engajados. Alvo de polêmica, por tocar em questões espinhosas, a nova preocupação em evitar termos como “denegrir” e “judiar” e em passar longe de machismos e de manifestações de preconceito contra certos grupos foi, aos trancos e barrancos, se impondo e forçando a sociedade a rever julgamentos — um processo que, agora, o woke está enfraquecendo, com seus excessos. A cultura woke, ainda sem esse nome, começou a transbordar da academia ao longo da última década, mas se intensificou, radicalizou e foi batizada em 2020, quando o antirracismo virou brado mundial depois que um policial branco estrangulou até a morte o negro George Floyd em Minnesota, na rua, à luz do dia. A partir daí, o termo, cunhado nos anos 1930 para designar a necessidade de alerta constante contra o preconceito racial, e assim usado por Martin Luther King e outros ativistas, ganhou as redes e passou a englobar um saco de gatos de questões identitárias.
Previsivelmente, o radicalismo woke é difícil de ser engolido pela sociedade em geral, uma arma rapidamente empunhada pela direita conservadora americana que, neste ano eleitoral, conduziu a polêmica para o centro do discurso republicano — de quebra, colando ao termo uma conotação pejorativa que freia seus efeitos positivos. No final do ano passado, essa guerra cultural tomou conta dos imponentes corredores dos prédios de tijolo vermelho de Harvard e levou à renúncia da reitora Claudine Gay. Depondo no Congresso sobre o nítido antissemitismo presente nas manifestações no campus contra os ataques de Israel a Gaza, depois do terror de 7 de outubro, a doutora Gay não abriu a boca para condenar a deplorável atitude dos estudantes. Perguntada se “pedir o genocídio dos judeus viola as regras de Harvard”, respondeu duas vezes: “Depende do contexto”. A resposta foi uma postura essencialmente woke, uma vez que, segundo a cartilha, não se poderia, nem mesmo diante de uma inaceitável manifestação de intolerância, cercear a liberdade de expressão.
Do outro lado da arena, a militância direitista descobriu que a reitora não havia escrito nenhum livro e só publicara onze artigos em 26 anos — metade deles contaminada por acusações de plágio. Ao justificar a renúncia, a reitora argumentou, talvez com razão, que o furor foi alimentado por um “animus racial”. Mas as falhas no currículo levantaram a hipótese de outro pecado woke: de que a cor da pele teria sido, na verdade, o fator decisivo para ela ascender ao cargo em junho passado. Se comprovado, seria o exemplo acabado do tiro no pé que é buscar diversidade a todo custo.
A reação israelense ao bárbaro ataque do Hamas tornou-se, aliás, nos Estados Unidos e em boa parte do mundo, o mote para um vórtice de extremismo que engole o bom senso. A esquerda sempre foi favorável à causa palestina, o que faz sentido, mas o maniqueísta universo woke, que divide o mundo entre opressores e oprimidos, ignora nuances e fecha os olhos a falhas do lado “certo”, produzindo, em alguns casos, até violência. Choveram denúncias de estudantes de origem judaica que gratuitamente apanharam de colegas. “Esses jovens enxergam os judeus como opressores dos palestinos e, portanto, não podem vê-los como vítimas em nenhuma circunstância”, diz o historiador Doron Ben-Atar, da Universidade Fordham. É com essa venda que os patrulheiros fiscalizam chefes de Estado, pesquisadores, instituições, empresas, influencers e até anônimos, furiosamente cancelados quando saem da linha. “É tudo ou nada”, resume Ben-Atar.
Como foi na academia que o movimento encontrou embasamento teórico, é lá que seu impacto sacode o ringue ideológico com maior intensidade e se amplifica. Em setembro passado, repercutiu nas redes o embate em sala de aula entre uma aluna trans e uma professora na Universidade Federal da Bahia. A estudante se queixou de falta de atenção e de ter sido tratada no masculino (sem má intenção, segundo a docente, que se diz vítima de calúnia e difamação). Foi o suficiente para prestar queixa na Polícia Civil por transfobia e racismo, um caso que está sob investigação. Nos Estados Unidos, das 500 tentativas de demitir professores universitários desde 2015, mais da metade (52%) partiu de acadêmicos alinhados com a esquerda mirando conservadores, e a maior parte das reclamações (39%) se relaciona a comentários inaceitáveis sobre raça. O tema deve, sem dúvida, ser martelado, dado que o preconceito ainda persiste em muitos graus. Mas o imprescindível combate à intolerância perde pontos quando os excessos do woke sugerem revisionismos extraordinários, como o proposto no curso Buracos Negros — Raça e o Cosmo, da prestigiadíssima Universidade Cornell. A premissa: denominar o ponto do espaço que engole tudo, inclusive a luz, pela cor é, no fundo, uma manifestação de racismo.
Preocupadas com a ressonância do tambor woke, instituições de primeira linha, como as universidades de Michigan e de Stanford, formularam cartilhas de termos que consideram apropriados aos novos tempos, adaptando-se à bandeira mais visível do movimento, o policiamento do discurso (veja o quadro na pág. 63). Estão proibidos, entre muitos outros, “aborto” (agora “encerrar a gravidez”, para evitar julgamento moral) e “mulher” (para não excluir as trans, seria melhor “pessoa que menstrua”). É uma espécie de índex no qual um apanhado de esquisitices se mistura a modificações efetivamente sensatas que, por causa dos exageros, acabam não sendo levadas a sério, nem sequer compreendidas pela maioria fora da bolha woke. O uso da linguagem neutra, nesse universo, é um mandamento, fazendo do emprego do verbete “todos”, em vez de “todes”, praticamente um insulto.
De novo: são reivindicações válidas e positivas para quem quiser adotá-las, mas não justificam a ira moralista dos censores de plantão contra quem prefere não mudar os pronomes. “Às vezes eu tenho a impressão de que uma parcela dos jovens acha que o jeito de conquistar mudanças é criticando os outros o tempo todo. Isso não é ativismo. Se tudo o que você faz é atirar pedras, não irá muito longe”, disse Barack Obama, primeiro e único presidente negro dos Estados Unidos, que já se pronunciou algumas vezes sobre os excessos do woke. Preocupado com a invasão do “americanismo” nos meios intelectuais franceses, o presidente Emmanuel Macron moveu uma cruzada contra a priorização da questão identitária e da valorização dos excluídos no debate acadêmico. E foi longe: chegou a mandar revisar todos os papers publicados, para avaliar o tamanho da “invasão”. No começo de 2023, cedeu — até ele — ao woke e indicou um negro, Pap Ndiaye, de origem senegalesa, para o Ministério da Educação, claramente pressionado a adotar o funil que tem servido de filtro nestes tempos. Seis meses depois, trocou o ministro.
Os extremistas “despertos” vestem um manto de superioridade moral ao decretar que todos os que não pertencem ao clube estão adormecidos, iludidos, errados. O instinto do movimento é encerrar qualquer tipo de debate — daí o pendor pelo cancelamento. Ele também impõe uma espécie de hierarquia, na qual quanto mais oprimida, maior o direito da pessoa de pautar a discussão. Ou seja: os argumentos de uma mulher preta são mais fortes do que os de uma mulher. A esse respeito, o sociólogo Henrique Restier, que estuda masculinidades negras, trouxe a público uma queixa mergulhada no caldo woke — ele acusa o Ministério da Igualdade Racial de colocar o seu sexo em segundo plano e “se tornar o Ministério das Mulheres Negras”. Nessa ordem de coisas, brancos de vida privilegiada se sentem diminuídos ao circular pelo ambiente woke, por mais conscienciosos que sejam. J.K. Rowling, a muito admirada autora da série Harry Potter, foi desancada ao comentar em um artigo que “pessoas que menstruam antigamente eram chamadas de mulheres” (ela comprou a briga e segue polemizando). No Brasil, em 2020, a antropóloga Lilia Schwarcz, que é branca, fez uma crítica sobretudo elogiosa ao filme musical Black Is King, de Beyoncé, mas alfinetou que “a cantora recorre a imagens estereotipadas e cria uma África caricata”. Imediatamente tachada de racista, pediu desculpas.
No livro The Identity Trap (A armadilha identitária), o cientista social germano-americano Yascha Mounk observa que a eleição de Donald Trump, em 2016, atiçou os ânimos da esquerda, o que, por sua vez, carregou os conservadores ainda mais para a direita. “Os dois lados se enxergam como inimigos mortais, mas alimentam-se mutuamente”, diz. Nesse contexto, o termo woke foi cooptado por políticos do Partido Republicano para simbolizar todos os males e justificar agendas retrógradas, que ameaçam direitos conquistados. Em comício no final do ano, Donald Trump prometeu criar uma “universidade anti-woke”, a que deu o nome de Universidade Americana. Na Flórida, o governador Ron DeSantis, que se arvora inimigo número 1 da turma, fez aprovar leis como a Stop Woke, que baniu estudos afro-americanos do currículo escolar, e a Don’t Say Gay (“não diga gay”), que restringe a educação sexual. Mais recentemente, advogou outra mudança no ensino que mostre que os escravos também tiraram vantagens da escravidão. “Precisei mudar minhas aulas. Muitos dos meus colegas deixaram o estado. Os estudantes estão se sentindo inseguros”, diz Staci Zavattaro, professora de gestão pública da Universidade Central da Flórida. Desde janeiro de 2021, 44 estados americanos apresentaram projetos de lei semelhantes aos de DeSantis.
Não há dúvida de que a maioria das pessoas que defende as pautas atreladas ao woke aspiram por um mundo melhor e que as injustiças contra as quais protestam são reais. Diversidade, tolerância, respeito, reparação de desigualdades — tudo isso é legítimo e merece ser levado em conta, sempre. A radicalização da cultura woke, no entanto, faz mais mal do que bem à causa pela qual milita. “É um ativismo simbólico, que perdeu contato com a realidade”, diz a professora Zavattaro. Remover as manchas (de todas as cores e formas) do tecido social requer, antes de tudo, cabeça aberta e equilíbrio — artigos raros, hoje em dia.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880