Obrador mostra garras contra sistema eleitoral e desencadeia protestos
O folclórico presidente AMLO faz mais uma das suas e enfraquece o instituto que fiscaliza o processo eleitoral, medida autoritária
É difícil decifrar o enigma AMLO — iniciais de Andrés Manuel López Obrador, 69 anos, ícone da esquerda eleito presidente do México em 2018, após duas tentativas frustradas. Entrando na reta final de seu mandato (a eleição é no ano que vem e, por lei, ele não pode disputar), López Obrador ostenta inabaláveis 60% de aprovação, apesar das posições polêmicas, dos ataques às instituições e de atitudes francamente autoritárias. A mais recente foi encaminhar ao Congresso um projeto de lei que reduz o orçamento e enfraquece o Instituto Nacional Eleitoral (INE), uma espécie de TSE mexicano. Aprovada por 72 a 50, a medida foi alvo de protestos em todo o país, que culminaram com manifestações maciças em uma centena de cidades. Na capital, a mobilização, sob o lema “Não toque no INE”, reuniu entre 500 000 pessoas (segundo os organizadores) e 100 000 (segundo a prefeitura) pessoas vestidas de rosa, a cor do instituto, no Zócalo, a praça histórica onde se situa o Palácio Nacional.
O INE teve papel fundamental no encerramento das duas décadas em que um único partido, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), dominou a política mexicana e o corte de orçamento e pessoal promovido agora por AMLO foi visto como uma tentativa de garantir a vitória de sua própria legenda, Morena (Movimento Regeneração Nacional) na eleição de 2024. López Obrador, que atribuiu suas derrotas anteriores a fraudes às quais o INE teria feito vista grossa, argumenta que o instituto se tornou inflado, obsoleto e sujeito a manipulação. O propósito das manifestações, afirmou, era “defender velhos privilégios”. O projeto, inclusive, é considerado um plano B, sendo o A uma proposta, não levada adiante, de dar ao governo controle total das eleições. Adversários da nova lei questionam sua constitucionalidade junto à Suprema Corte e torcem para que ela seja revogada. “A reforma vai destruir a instituição que assegura aos cidadãos um padrão eleitoral confiável, apuração transparente e garantia de que os eleitos assumirão seus cargos”, diz Francisco Valdés, do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade Nacional Autônoma.
Entre outras medidas discutíveis, AMLO ampliou o papel do Exército em funções civis, como distribuição de medicamentos e obras de infraestrutura, e tenta controlar a internet. Faz da imprensa um alvo preferencial nas mañaneras, entrevistas às 7h da manhã a veículos pouco críticos. Nessas conversas, que podem durar horas, também denuncia as “elites neoliberais”, critica quem o critica e destila fake news — segundo a ONG Artigo 19, 40% do que pronunciou no ano passado era parcial ou totalmente falso. Fiel praticante de gestos midiáticos — com quem Lula conversou por telefone e aceitou convite para uma visita —, cortou o próprio salário e viaja em classe econômica. Recentemente, repostou no Twitter o que seria a foto de um alux, entidade espiritual maia. “Tudo é místico”, cravou na legenda. Teve 10 milhões de visualizações.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831