O programa do governo britânico para contratação de talentos estrangeiros
Aos que fogem de guerras e da pobreza, oferece-se passagem para a África
As levas de refugiados do Oriente Médio e do Norte da África que invadiram a Europa em 2015 foram um dos principais empurrões para que britânicos traumatizados votassem, no ano seguinte, a favor da saída de seu país da União Europeia, o célebre Brexit. Mesmo antes disso, uma das bandeiras da campanha pró-separação era a perspectiva de livrar o reino dos forasteiros indesejáveis que usufruem dos serviços públicos e tiram empregos de quem de direito (palavras dos brexiters). Só que a concretização do divórcio provocou uma debandada de empresas e profissionais para o continente, êxodo acirrado pela pandemia, quando muitos estrangeiros optaram por voltar para casa. Assim, de repente, o Reino Unido deparou com uma tremenda escassez de mão de obra.
Cerca de 1,3 milhão de trabalhadores foram embora nos últimos dois anos e as projeções oficiais mostram que, até 2031, ao menos 1,1 milhão de vagas terão de ser repostas. Antecipando problemas, o governo criou em 2020 um programa de incentivos à entrada de trabalhadores qualificados de outros países, os vistos Skilled Workers. Resultado: no reino que pouco tempo atrás sonhava em se fechar a gente de fora, 220 000 estrangeiros foram recebidos de braços abertos pelo governo do primeiro-ministro Boris Johnson — um brexiter de carteirinha. A boa vontade tem limites, porém. Os desesperados que arriscam a vida no Canal da Mancha para tentar chegar à ilha estão sujeitos, por força de um plano anunciado há pouco, a ser despachados para a África.
Um novo levantamento mostra que o Reino Unido concedeu, no ano passado, 240 000 autorizações de trabalho para estrangeiros (nem todas já foram processadas), um aumento de 110% em relação ao ano anterior e de 25% em comparação com 2019. Dessas, 63% foram para profissionais qualificados, principalmente indianos e nigerianos, que, por terem nascido em ex-colônias, chegam com a vantagem de falar inglês. No mesmo período, o número de europeus buscando emprego no Reino Unido caiu 36%. “Mesmo com a possibilidade de regularizar sua situação, os cidadãos da União Europeia decidiram ir embora por não se sentirem bem-vindos”, afirma Carolina Boniatti Pavese, ph.D. em relações internacionais pela London School of Economics e professora dessa disciplina na ESPM. Do lado das empresas, foi suspensa a exigência de comprovação de tentativa anterior de preencher a vaga com britânicos e o salário mínimo sofreu uma redução, de 30 000 para 25 600 libras anuais (160 000 reais).
Abertos a todos os países, os vistos Skilled Workers acolheram até agora 2 155 brasileiros. No topo da lista de candidatos bem-vindos estão enfermeiras, médicos, programadores e estudantes de pós-graduação. “Apliquei para várias vagas no Canadá e no Reino Unido, e decidi por Londres pensando na minha carreira”, diz o engenheiro de software Lucas Fronza, 27 anos, de Porto Alegre, contratado por uma das primeiras firmas a se inscrever no programa. Em geral, a empresa que recorre aos Skilled Workers emite um certificado que comprova o vínculo empregatício do estrangeiro e paga parte do visto, que custa 4 000 libras (25 000 reais) e tem duração de dois, três ou cinco anos. Ao fim de cinco anos, o profissional pode requerer o Indefinite Leave to Remain, que lhe dá o direito de permanecer no país por tempo indeterminado. Um ano depois, ele estará apto a solicitar a cidadania britânica. A enfermeira Silmara Suassuna, 30 anos, está de mudança com a família para o agradável condado de Surrey, perto de Londres, onde vai trabalhar como cuidadora. “Quero ter certeza de que meu filho de 1 ano vai crescer em um ambiente melhor do que no Brasil”, justifica. Ela preencherá uma das mais de 200 000 vagas no National Health Service (NHS), o sistema público de saúde que sofre os efeitos das mortes e da enxurrada de pedidos de demissão de funcionários durante a pandemia, depois de ser recrutada pela empresa Health Recruitment UK.
O recente incentivo à entrada de estrangeiros teve o saudável efeito colateral de reduzir a intolerância: de 2015 para 2022, os britânicos anti-imigrantes caíram de 67% para 42%. A situação muda de figura, no entanto, quando o estrangeiro vem da Eritreia, Iraque, Irã, Síria ou outro país em conflito, pedindo para ser acolhido na condição de refugiado. Um projeto do governo de mandar todos de volta foi engavetado, diante do risco de serem presos ou mortos ao retornar. Agora, a proposta, ainda em fase de planejamento, é mandar pelo menos parte deles para campos em Ruanda, país da África Oriental que aceita acomodar refugiados — em condições precárias e sem perspectivas de futuro — em troca de pagamento. A rejeição diminuiu, mas ainda há um longo caminho até um estágio mais avançado de civilidade.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788