O presidente e o monstro: os bastidores do escândalo de Fernández
Investigação de corrupção revela que o ex-presidente argentino agredia a esposa enquanto exercia seu desastroso mandato
Quando deixou a Casa Rosada em dezembro do ano passado, sob reprovação de 80% do eleitorado e uma inflação de 150% ao ano, Alberto Fernández buscava um destino melancólico, mas usual entre os chefes de Estado impopulares: dar tempo ao tempo, até que um contexto menos desfavorável lhe permitisse reescrever a própria biografia. O plano incluía até aulas na universidade Aleph, em Madri, mas foi atropelado por um escândalo. Ao que tudo indica, Fernández tinha por hábito espancar a mulher com quem viveu por oito anos, em pleno exercício do cargo.
O caso veio à tona durante a investigação da participação dele em um esquema de corrupção na divisão de seguros do Banco de la Nación, instituição financeira estatal. Ao apreender o celular de uma secretária da Presidência da República cujo marido também estaria envolvido na tramoia, os investigadores descobriram mensagens de texto da ex-primeira-dama, Fabiola Yáñez, ao então marido. “Faz três dias que você me bate”, escreveu.
O aparelho também continha fotos dela com hematomas no rosto e no braço. De acordo com a imprensa portenha, a agressão ocorreu em 2021, na Quinta de Olivos. Em crise, Fabiola e Fernández estariam separados, mas mantinham as aparências, com ela ocupando a ala da residência oficial destinada aos hóspedes. Durante uma discussão acalorada, o presidente partiu para as vias de fato e só parou de bater em Fabiola quando dois funcionários públicos se interpuseram entre os dois.
Mesmo se tratando de alguém afastado do poder, o entrevero agitou a política argentina. Javier Milei, crítico feroz dos movimentos feministas, não perdeu a chance de dançar um tango sobre a pauta identitária do peronismo, que chegou a levar até a linguagem inclusiva para os comunicados oficiais. “A solução para a violência contra as mulheres não é culpar os homens por serem homens”, declarou na plataforma X. Diante da repercussão negativa, políticos da União pela Pátria viraram as costas para o companheiro de partido e apresentaram uma representação solicitando que as investigações prossigam. Eleita como vice de Fernández, Cristina Kirchner atacou o ex-aliado, mas defendeu o próprio campo político, alegando que “a violência contra a mulher não tem bandeira partidária”. Acuado, o ex-presidente concedeu uma entrevista ao El País, em que se limitou a afirmar que jamais bateu na mulher, mas sem oferecer uma explicação plausível para o ocorrido. “O episódio aprofunda o processo de descrença na política que está em marcha na Argentina desde as eleições”, diz o cientista político Daniel Montoya.
Fernández e Fabiola se conheceram em Palermo, em 2013, quando o político deu uma palestra na universidade onde ela estudava. A jovem pediu para fazer uma entrevista para um trabalho acadêmico e os dois começaram a namorar. A diferença de idade de 22 anos não foi um impeditivo. Em depoimento à Justiça, a ex-primeira-dama contou que, em 2016, o parceiro, com quem nunca se casou formalmente, a obrigou a fazer um aborto. Depois disso, ela se tornou dependente de álcool. Originalmente, a crise que descambou para a pancadaria estaria relacionada a fotos de mulheres nuas que Fernández mantinha no celular e que foram reveladas por acaso, enquanto Francisco, o filho de 2 anos e meio do casal, brincava com o aparelho. A história envolve até uma radialista local com quem o ex-presidente teria tido um relacionamento extraconjugal. Fernández está impedido de sair do país e de se aproximar de Fabiola, e pode ficar até seis anos preso, em caso de condenação. A Justiça decidirá, mas o público já tem seu veredito.
Com reportagem de Paula Freitas
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906