O mito não resistiu
Reportagem do 'New York Times' demonstrou que o pai de Donald Trump transferiu para ele 413 milhões de dólares de 295 formas — algumas ilegais
Todo herói precisa de um mito, uma história que o justifique. Para uma parcela dos americanos que votaram no presidente Donald Trump em novembro de 2016, ele merecia o cargo mais poderoso do mundo porque ostentava uma trajetória bem-sucedida nos negócios. Com uma pequena ajuda na forma de um cheque de 1 milhão de dólares de seu pai, Fred, que faleceu em 1999, o filho teria amealhado uma fortuna alegada de 10 bilhões de dólares. Quando lançou sua campanha para a Casa Branca, Trump aproveitou-se ainda de sua fama por ter estrelado o programa de televisão O Aprendiz, em que exibia suas técnicas a candidatos que sonhavam um dia poder trabalhar em uma de suas empresas. Seu tino para os negócios, que ele registrou no livro A Arte da Negociação, não apenas seria capaz de colocar a economia americana de volta nos trilhos como seria de imensa valia para lidar com outros líderes mundiais e para renegociar acordos, como o Tratado de Livre-Comércio da América do Norte, o Nafta (leia ao final da reportagem).
Esse mito do self-made man (o homem que se faz sozinho, em inglês) foi estraçalhado na semana passada. Em uma matéria de 38 páginas, a mais longa da história do jornal, e que demorou um ano para ser realizada, o The New York Times trouxe detalhes e provas de como Trump acumulou sua riqueza, que na realidade está na casa dos 3 bilhões de dólares. Mais do que de mérito próprio, Trump beneficiou-se das remessas polpudas que o pai fez para ele, muitas vezes aproveitando-se de lacunas jurídicas para pagar menos impostos ou fazendo transações à margem da legislação — operações ilegais das quais Trump também participou. “Os americanos sempre se vangloriaram de ter um país de leis, e não de homens, mas essas revelações deixaram claro que Trump e seu pai operaram em uma atmosfera muito corrupta”, diz o cientista político americano Paul Musgrave, professor da Universidade Massachusetts Amherst. “Se isso tivesse aparecido em 2016, teria mudado a opinião de muitos eleitores.”
Com 3 anos de idade, o pequeno Donald Trump ganhava cerca de 200 000 dólares, em valores atuais, das empresas criadas pelo pai. Com 8 anos, já era milionário. Ao todo, ele e seus irmãos, Robert e Maryanne, receberam dos pais mais de 1 bilhão de dólares. Se a dinheirama tivesse sido tributada corretamente, o valor arrecadado pelo governo americano seria de 550 milhões de dólares, o que corresponde a 55% da herança. Com as trapaças, o imposto efetivamente pago foi de apenas 52 milhões, o equivalente a 5% do total, segundo o Times.
Ao longo dos anos, Trump recebeu 413 milhões de dólares. O montante chegou até ele através de 295 canais, entre legais e ilegais. Nos anos 1990, quando o cassino Trump’s Castle estava em dificuldade, Fred mandou um contador com cheques para comprar 3,5 milhões de dólares em fichas. Nenhuma aposta foi feita. O empréstimo — ilegal, descoberto pelas autoridades — resultou em uma multa de 65 000 dólares. Fred também comprou 7,5% das ações do Trump Palace, uma torre residencial em Manhattan. Pagou por elas 15,5 milhões de dólares. Depois, vendeu os papéis ao filho por meros 10 000 dólares.
As suspeitas sobre as maracutaias dos Trump não surgiram agora. O fato de o presidente ter se recusado a revelar seu imposto de renda na campanha só atiçou as desconfianças. “Se Trump é uma pessoa honesta, ele deveria aproveitar essa oportunidade para publicar sua declaração e dirimir as dúvidas”, diz o cientista político John Tures, da Universidade LaGrange, na Geórgia. Embora tornar pública a declaração de imposto de renda não seja obrigatório por lei, presidentes e candidatos a cargos públicos têm feito isso no último meio século. “Suspeito que, agora, Trump se torne ainda mais relutante em publicá-la”, diz o cientista político Martin Geoffrey Cohen, da Universidade James Madison, na Virgínia.
Apesar de todas as alegações, é pouco provável que Trump sofra graves consequências. Como os crimes fiscais teriam acontecido há muitos anos, eles já prescreveram. O republicano não está isento, no entanto, de uma ação civil e do pagamento de multas. O Departamento de Tributação e Finanças de Nova York instaurou uma investigação após a publicação da reportagem. Politicamente, o efeito será obscurecido pela polarização. Democratas já não acreditavam em Trump como um empresário de sucesso. Republicanos entenderão que se trata de mais um ataque da mídia. “Ele pode ter uma pequena queda de apoio, mas a aprovação de Trump, em aproximadamente 40%, está muito bem consolidada”, diz o cientista político Michael Bitzer, da Universidade Catawba, na Carolina do Norte.
Só não chame de nafta
O Tratado de Livre-Comércio da América do Norte, conhecido pela sigla Nafta, foi reconfigurado na semana passada. Passará a se chamar Acordo Estados Unidos, México e Canadá (USMCA, na sigla em inglês) e terá alterações. Laticínios americanos entrarão com mais facilidade no Canadá. Carros só terão isenção de impostos se pelo menos 75% de seus componentes forem feitos nesses três países. Será necessário que 40% do veículo seja produzido por trabalhadores que ganhem em média 16 dólares por hora. Fora isso, não há muito a destacar. “Há algumas poucas diferenças entre o Nafta e o USMCA. A maior delas é o nome”, diz a economista Christine McDaniel, da Universidade George Mason, da Virgínia.
O primeiro-ministro canadense Justin Trudeau comemorou discretamente. O presidente eleito do México, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), que assumirá somente no dia 1º de dezembro, enviou representantes para as negociações e celebrou o resultado. “Consideramos que contribuímos para chegar a um acordo que dá segurança à economia nacional”, disse AMLO, que até então via o Nafta como uma obra das elites e dizia que poria Trump em seu devido lugar. O mais importante para os parceiros dos Estados Unidos era firmar um acordo, qualquer que fosse ele. Como o americano tinha ameaçado rasgar o Nafta, a incerteza era geral. Cerca de 80% das exportações do México vão para os Estados Unidos. Além disso, em agosto, Trump fez um acordo em separado com o México e deixou o Canadá de fora. As últimas arestas só foram aparadas horas antes do prazo final, à meia-noite do domingo 30 de setembro. “A boa notícia é que a indústria poderá voltar aos negócios sem temer um ajuste brusco”, diz o cientista político canadense Krzysztof Pelc, da Universidade McGill, em Quebec. Em seis anos, as partes poderão renegociar algumas cláusulas, mas o acordo só vencerá daqui a dezesseis anos. “Considerando que Trump queria um prazo de cinco anos, foi tranquilizador”, diz a economista Patricia Krause, da seguradora de risco Coface.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603