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O fim de uma era: a saída de cena de Angela Merkel

Será que alguém conseguirá, como ela, ser uma das vozes mais potentes e respeitadas do mundo sem uma gota de carisma e ostentação?

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h50 - Publicado em 12 set 2021, 08h00

Eleita dez vezes seguidas a mulher mais poderosa do mundo, Angela Merkel está de saída do governo da Alemanha. Após quase dezesseis anos no cargo, a chanceler não será candidata a nada nas próximas eleições, em 26 de setembro, e vai se aposentar da política aos 67 anos — a primeira chefe de Estado alemã a se retirar voluntariamente. “Quero usar meu tempo para ler mais e quem sabe até permitir que meus olhos se fechem quando estiver cansada, sem grandes preocupações”, disse recentemente, admitindo, no entanto, que não vai ser fácil se acostumar a ter suas tarefas “executadas por outra pessoa”.

A transferência de poder marcará um ponto de inflexão crucial na Alemanha, que sob o comando de Merkel se tornou mais rica, mais diversa e mais poderosa economicamente. Também provoca ondas de choque na Europa e no resto do mundo desde que ela anunciou, ainda em 2018, a decisão de deixar o Parlamento e a liderança de seu partido, a União Democrata-Cristã (CDU), depois de imprimir na diplomacia global sua marca de negociadora inabalável na busca de compromissos viáveis. “Uma geração inteira não conhece outra realidade que não a de Merkel no poder. Sua saída representa a interrupção de um longo período de estabilidade e confiança por parte da sociedade”, diz Reimut Zohlnhoefer, cientista político da Universidade de Heidelberg.

ENROLADO - Laschet: o nome da situação não decolou -
ENROLADO - Laschet: o nome da situação não decolou – (Oliver Berg/DPA/Getty Images)

Contribui para a incerteza quanto aos rumos da Alemanha interna e externamente o fato de os dois candidatos mais cotados para o cargo de chanceler não serem… bem, não serem uma Merkel. A aposta inicial da CDU tinha sido em outra mulher, Annegret Kramp-Karrenbauer, a AKK, escolhida a dedo pela chanceler. AKK chegou a assumir a liderança do partido, mas se mostrou extremamente inábil e acabou renunciando. Sobrou para Armin Laschet, governador da Renânia do Norte-Vestfália, que não tem carisma, comete gafes e, ainda por cima, se saiu muito mal na resposta às inundações históricas que arrasaram sua região em julho. Nas últimas pesquisas, ele aparece 5 ou 6 pontos porcentuais atrás do atual ministro das Finanças e vice-chanceler, Olaf Scholz, líder do Partido Social-Democrata (SPD). Mais à esquerda, o SPD formou com a CDU uma coalizão de governo ao longo de todo o pós-guerra. Agora, Scholz — que também não encanta ninguém e é acusado de imitar Merkel até nos gestos — acena com a possibilidade de fazer alianças com outras legendas caso saia vitorioso. Preocupada, a chanceler desistiu da neutralidade e mergulha na campanha por Laschet, que, segundo ela, conduzirá “um governo que levará nosso país para o futuro, com moderação”.

ESPERANÇOSO - Scholz: imitação de Merkel na campanha -
ESPERANÇOSO - Scholz: imitação de Merkel na campanha – (Kay Nietfeld/DPA/Getty Images)
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Discreta e rodeada de um círculo reduzido de assessores de confiança, Merkel foi alçada ao mais alto posto da política alemã aos 51 anos, apadrinhada por Helmut Kohl, o “chanceler da reunificação”, após a queda do Muro de Berlim. Formada em química e física, casada e sem filhos, tornou-se a primeira mulher, e a primeira pessoa nascida na antiga Alemanha Oriental, a governar o país. Seu jeito calmo e até passivo de lidar com problemas, evitando confrontos, cedendo aqui e ali e alinhavando acordos, rendeu muitas piadas e apelidos, como o famoso Mutti, que quer dizer “mãe”, mas com uma pontinha de desdém. Seu nome também entrou para o vocabulário: zu merkeln define situações em que alguém age de forma hesitante. Essa postura pragmática, porém, foi essencial para que Merkel sobressaísse nas maiores crises do século XXI.

Logo nos primeiros anos de governo, a chanceler, na condição de líder do país mais rico, conduziu a União Europeia com sucesso pelo tortuoso labirinto da derrocada do euro e o colapso do sistema financeiro global de 2008. Em 2015, já firme na posição de voz mais potente da Europa, tomou a difícil decisão de acolher 1,4 milhão de refugiados do Oriente Médio e da África em seu país, enquanto os vizinhos erguiam cercas de arame e barreiras de todo tipo à entrada das multidões que fugiam de guerras e da pobreza. Mais recentemente, atuou nos bastidores para impedir que a saída do Reino Unido da UE abrisse uma brecha fatal para a existência do bloco e que a postura beligerante de Boris Johnson exaltasse ainda mais os ânimos e as hostilidades no doloroso processo de concretização do Brexit.

CANSAÇO - Manifestação contra lockdown em Berlim: a pandemia desgastou o apoio da população ao governo -
CANSAÇO - Manifestação contra lockdown em Berlim: a pandemia desgastou o apoio da população ao governo – (Hosbas/Anadolu/Getty Images)
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Merkel marcou um tento no começo da pandemia: com a aplicação vasta e eficiente de testes e um sistema de saúde azeitado, a Alemanha em um primeiro momento registrou números de contágio e mortes de dar inveja ao mundo todo. Boa parte desse prestígio, no entanto, desmoronou à medida que a segunda e a terceira ondas tomavam conta da Europa e os alemães saíam às ruas para reclamar de novas e rigorosas quarentenas — a certa altura, uma multidão, insuflada por apoiadores de Donald Trump, ameaçou invadir o Parlamento em Berlim. De novo à frente de duras negociações, a chanceler conseguiu aprovar um pacote de mais de 1,5 trilhão de euros para tirar as economias do bloco do abismo econômico cavado pelo novo coronavírus. “Não exagero quando digo que este é nosso momento mais difícil nos últimos quinze anos”, disse em seu discurso de fim de ano em 2020.

PANOS QUENTES - Johnson, o cruzado do Brexit: a ação de Merkel impediu um estrago maior na União Europeia -
PANOS QUENTES – Johnson, o cruzado do Brexit: a ação de Merkel impediu um estrago maior na União Europeia – (Dominic Lipinski/PA Images/Getty Images)

Sob Merkel, a Alemanha avançou em termos sociais e ambientais, com a aprovação do casamento gay, a adoção de um salário mínimo nacional, a drástica decisão de fechar todas as usinas nucleares e projetos visando uma economia de carbono zero. No mundo da diplomacia, engoliu antipatias e estabeleceu o diálogo com chefes de Estado controversos, como o turco Recep Erdogan, o ex-­presidente americano Donald Trump e o russo Vladimir Putin. “Ela é fluente em russo e se tornou a única líder ocidental a travar um diálogo direto e aberto com Putin”, diz Klaus Schubert, analista da Universidade de Münster. Nos últimos anos, foi vista em ocasiões públicas tremendo descontroladamente, mas insistiu que não tinha nenhum problema de saúde sério e seguiu em frente — entre outras coisas, pondo uma alemã de sua confiança, Ursula von der Leyen, à frente da Comissão Europeia, o órgão executivo da UE. Pesquisas mostram que, dentro e fora da Alemanha, Merkel é admirada por ser contida, cautelosa, metódica, pragmática e evasiva. Laschet e Scholz tentam agora passar a mesma imagem na campanha pelo cargo de chanceler, com muito menos talento. Não espanta que o jornal Die Welt tenha levantado, em manchete, a questão: “Será esta a eleição mais chata de todos os tempos?”. Certo é que a senhora de franja, terninho e salto baixo, sem nada de excepcional na aparência e na postura, vai fazer muita falta.

Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755

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