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Na China, a ordem agora é ter filhos

Preocupado com o recuo nos nascimentos, o país mais populoso do planeta aumentou para três o número de crianças permitidas por casal

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 13h43 - Publicado em 4 jun 2021, 06h00

Quem diria que o país mais populoso do mundo, com 1,4 bilhão de habitantes, um dia se veria atormentado pela perspectiva de faltar gente para tocar o projeto de se tornar a maior potência do planeta. Pois é: a China encontra-se em uma encruzilhada demográfica, com o nascimento de bebês em queda e o envelhecimento em alta acelerada. A preocupação é tamanha que, na segunda-feira 31, o Partido Comunista anunciou que vai flexibilizar novamente a política de controle de natalidade e permitir que cada casal tenha até três filhos, além de expandir a rede de creches e garantir o emprego das mães. A medida enterra de vez a política de filho único que vigorou por quase quatro décadas e que já havia sido reformada há cinco anos, quando a cota familiar passou para dois herdeiros. O impulso para o novo aumento foi a revelação contida no último censo, em maio, de que apenas 12 milhões de bebês nasceram em 2020, um recuo de 15% na comparação com o ano anterior — a quarta queda consecutiva e fator decisivo para a taxa de crescimento populacional se situar em mero 0,5% ao ano, a mais baixa já registrada.

arte chineses

A pandemia tem sua parcela de responsabilidade, mas a pouca disposição dos chineses para se reproduzir vem de antes dela e, apesar dos incentivos do governo, não dá indícios de se reverter. Com o custo de vida subindo sem parar, educação e moradia cada vez mais caras e jornadas de trabalho exaustivas, os jovens chineses adiam a chegada de filhos e, em muitos casos, não pretendem ter nenhum. Em pesquisa realizada logo após o aumento da cota de rebentos no Weibo, a versão chinesa do Twitter, com 31 000 millennials chineses, 95% disseram que pretendem ter no máximo uma criança porque não podem sustentar família maior. “Há sérias razões para o governo chinês se preocupar com o futuro de sua população”, diz Yong Cai, sociólogo especialista em assuntos chineses da Universidade da Carolina do Norte.

Nesse contexto, o controle de natalidade imposto pelo governo se torna inócuo e vozes dentro da própria China defendem que ele simplesmente deixe de existir, transferindo para os pais a decisão sobre quantos filhos querem ter. Segundo especialistas, porém, dificilmente o governo abrirá mão desse instrumento de controle social. Primeiro, porque estaria reconhecendo que a política do filho único foi um equívoco — e o PC chinês não é dado a admitir erros. Além disso, ter a palavra final sobre reprodução continua sendo útil para controlar numericamente minorias como os muçulmanos uigures, da província de Xinjiang, onde as mulheres são obrigadas a ter poucos filhos.

APERTO - Multidão na Muralha: até o fim do século, a China pode ter metade de seu 1,4 bilhão de habitantes -
APERTO - Multidão na Muralha: até o fim do século, a China pode ter metade de seu 1,4 bilhão de habitantes – (Kevin Frayer/Getty Images)
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Se confirmadas as projeções atuais, o crescimento populacional da China cessará por completo em 2030 e até o fim do século o país registrará pouco mais de 700 milhões de habitantes — a metade de hoje. Tal encolhimento seria desastroso para a construção da potência global que o presidente Xi Jiping tem em mente. Nos últimos quarenta anos, o governo chinês mobilizou sua enorme vantagem populacional para alcançar taxas de crescimento espantosas (veja a coluna de Vilma Gryzinski na pág. 55), convocando os habitantes da empobrecida zona rural para trabalhar na indústria a custo baixíssimo. A manobra atraiu empresas de toda parte, que lá instalaram os parques manufatureiros que fazem da China, hoje, a fábrica do mundo. A virada demográfica, no entanto, já está mudando esse cenário.

O contingente de 900 milhões de chineses na faixa etária entre 15 e 59 anos é 7 pontos porcentuais menor do que há dez anos e a escassez de trabalhadores tem provocado um apagão de mão de obra. Em Guangzhou, a 130 quilômetros de Hong Kong, recrutadores de empresas abordam jovens na rua para oferecer emprego. Na industrial Hangzhou, montadoras de automóvel não conseguem preencher vagas e estão apelando para a robótica na linha de produção. Nessa toada, dificilmente Xi Jinping conseguirá alcançar seu objetivo de dobrar o PIB até 2035 e elevar a China ao posto de maior economia do planeta. “A demografia vai restringir os planos mais ambiciosos do governo. Ela deve afetar a composição de instituições cruciais, como o Exército Vermelho, e, no longo prazo, pode ameaçar até a liderança do Partido Comunista”, diz Kent Deng, professor de história econômica da London School of Economics.

FÁBRICA DO MUNDO - Indústria chinesa: mão de obra barata começa a faltar -
FÁBRICA DO MUNDO - Indústria chinesa: mão de obra barata começa a faltar – (STR/AFP)
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Por mais que o país exiba um avanço fenomenal em menos de meio século, saindo da extrema pobreza para a potência que é agora, seu Índice de Desenvolvimento Humano continua sendo inferior ao dos Estados Unidos e Europa, e o PIB per capita, de 17 000 dólares anuais, é um terço do americano. “Com a queda prevista de população, dificilmente a China conseguirá superar os Estados Unidos no contexto da geopolítica global”, afirma Julian Evans-Pritchard, economista da consultoria Capital Economics. Em paralelo ao encolhimento do número de jovens, a quantidade de velhos se expande rapidamente — atualmente, 13% da população tem 65 anos ou mais, a mesma porcentagem que o Japão registrava na década de 90, quando mergulhou em período de estagnação que dura até hoje. O rombo previdenciário se alarga e, segundo estudos do próprio governo, sem mudanças — como o aumento da idade de aposentadoria, que é de 60 anos para homens e 50 para mulheres — o sistema de pensões entrará em colapso em 2036.

A política do filho único apertou ainda mais o nó demográfico da China, mas o problema está presente em boa parte do mundo, inclusive no Brasil. Passado o crescimento espantoso da população mundial no século XX, quando ela saltou de 1 bilhão para 6 bilhões de pessoas, o ritmo desacelerou, fruto do aumento do custo de vida e da entrada das mulheres no mercado de trabalho. A taxa global de fecundidade, que calcula o número médio de filhos por mulher, chegou a 4,7 em 1950 e hoje está em 2,4 no planeta, 1,7 no Brasil e apenas 1,3 na China — sendo 2,1 o ponto de equilíbrio ideal. Um estudo publicado na revista The Lancet projeta que em 23 países, entre eles Espanha, Itália e Japão, a população terá caído pela metade no fim do século. Até nos EUA, durante décadas a imagem da nação jovem onde reposição populacional nunca era problema, o Censo divulgado em abril mostrou avanço no número de habitantes de 7,4% nos últimos dez anos, o segundo pior resultado da história. Para evitar o colapso, os governos promovem políticas públicas de incentivo à natalidade, que vão de bônus para cada criança nascida a licença paternidade remunerada. A Itália acaba de aprovar um pacote de ajuda financeira que vai do sétimo mês de gravidez da mãe até os 18 anos do filho. Falta apenas combinar com os jovens, que cada vez menos se animam com a ideia de virarem pais.

Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741

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