Mulheres à frente na disputa pela Presidência mostram novos ares no México
Sacudindo o patriarcado, Claudia Sheinbaum e Xóchitl Gálvez lideram a corrida eleitoral de 2024
Conhecido pela cultura machista e patriarcal, representada no exterior em novelas, filmes e até no seriado infantil Chaves, o México, enfim, está revendo o papel da mulher na sociedade. A reforma vem acontecendo há algum tempo, mas ganhou um tremendo impulso agora, com dois acontecimentos marcantes e quase simultâneos. Primeiro, a Suprema Corte ampliou para todos os 31 estados a garantia de acesso ao aborto, direito que só se estendia a onze deles. Em seguida, o esquerdista Morena, partido no poder, e uma coalizão de oposição liderada pelo conservador PAN confirmaram duas mulheres – respectivamente, Claudia Sheinbaum e Xóchitl Gálvez – como candidatas à Presidência em 2024. No cotidiano, o país está a anos-luz da igualdade de gêneros: elas ganham em média 16% menos do que eles e, vítimas de violência doméstica, dez são assassinadas por dia. “Mesmo assim, poder dizer hoje que o México, no ano que vem, vai ser governado por uma mulher representa uma mudança extraordinária”, diz Jesús Silva-Herzog Márquez, cientista político do Instituto de Tecnologia de Monterrey.
Integrantes da mesma geração, Sheinbaum, 61 anos, e Gálvez, 60 anos, estrearam na política na virada do século, quando o Senado quase inteiro era composto de homens. Na eleição de 2018, o placar virou e elas se tornaram maioria. A transformação se solidificou um ano depois, quando uma emenda à Constituição estabeleceu que os partidos teriam que apresentar pelo menos 50% de candidatas mulheres. Resultado: o México está hoje em quarto lugar no mundo em matéria de inclusão feminina no Congresso, bem à frente do Brasil, Reino Unido e Estados Unidos.
As pesquisas mais recentes mostram Sheinbaum, do Morena, na frente, com 44% das intenções de voto, contra 27% de Gálvez. A líder se beneficia da proximidade com o atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, o popular AMLO, seu padrinho político que, no último ano de governo, ostenta inabalável índice de aprovação de 65%. Neta de imigrantes judeus, divorciada, mãe de uma filha e um enteado, ela é reservada e discreta e tenta compensar a falta de carisma com uma imagem de seriedade – é formada em física e doutora em engenharia ambiental – e a promessa de seguir na trilha aberta por López Obrador. Ex-prefeita da Cidade do México (renunciou para se candidatar), declara-se feminista, defensora do meio ambiente e integrante de uma nova geração de ativistas. “Sou filha de 1968”, define-se, manifestando orgulho de nunca haver se aproximado do PRI, o partido hegemônico que se manteve no poder no México por 71 anos seguidos e serviu de berço para muitos políticos ainda em atividade. “No fundo, Sheinbaum é uma funcionária pública. Se eleita, terá uma abordagem mais técnica”, diz Vanessa Rubio-Márquez, pesquisadora do Chatham House para as Américas.
De estilo bem diverso, Gálvez tem como marca registrada a fala de gente comum, intercalada por palavrões. “Minha regra de ouro: não quero saber de ladrões, nem frouxos, nem babacas”, disse após a indicação, em entrevista na qual prometeu que combaterá a violência com “os ovários”. “Sua maior dificuldade será mostrar que não é igual nem a AMLO, nem ao que veio antes dele”, analisa Rubio-Márquez. Nascida em família humilde, filha de pai indígena alcoólatra e violento e mãe mestiça, Gálvez usa roupas de estampas típicas e conta sempre que, quando criança, vendia tamales na rua para ajudar a família. Formada em engenharia e casada (não no papel) com o também engenheiro Rubén Sánchez, com quem tem um casal de filhos, é dona de uma bem sucedida empresa de tecnologia que está na origem de sua inesperada popularidade. No início do ano, AMLO, em uma de suas manãneras, a habitual entrevista a mídias amigas às 7 de manhã, resolveu investir contra a senadora pouco conhecida, então candidata a prefeita da capital, insinuando irregularidades em sua empresa. Gálvez apelou à Justiça, conseguiu direito de resposta foi bater à porta de seu gabinete no meio de uma entrevista. Não entrou, mas posou, postou e a cena viralizou.
AMLO, de fato, tem pouco compromisso com a verdade nas mañaneras. Segundo um levantamento, 40% do que falou no ano passado era parcial ou totalmente falso. Mas seu apoio terá peso considerável na eleição, consequência de seus programas sociais e da recuperação econômica pós-pandemia – depois de uma queda do PIB de 3,1% em 2022, prevê-se uma alta de 2,6% este ano, impulsionada pelo estímulo dos Estados Unidos à instalação de manufaturas em sua área de influência. Seja qual for o resultado, uma coisa é certa: no Palácio Nacional, a cadeira presidencial será um grito contra o patriarcado.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859