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Miami: vidas soterradas

Prédio residencial desaba após vários alertas e o número de vítimas pode chegar a quase 200 — justo quando a cidade tenta virar um polo de alta tecnologia

Por Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h29 - Publicado em 2 jul 2021, 06h00

Um tremor violento acordou a americana Raysa Rodríguez, 59 anos, funcionária aposentada dos correios, no meio da noite. Ela se levantou, abriu a porta da varanda do apartamento 907, no condomínio Champlain Towers, e, em vez de ver o mar, deparou com uma nuvem de poeira pairando sobre destroços — mais de cinquenta, das 136 unidades do prédio — as que sobraram também correm risco —, haviam desabado em questão de minutos, soterrando famílias inteiras. Sem entender direito o que tinha acontecido, Raysa conseguiu ligar para o irmão e foi orientada a descer as escadas, danificadas mas ainda transitáveis. Chegou ao térreo e encontrou a porta bloqueada. Voltou ao 1º andar, entrou em um apartamento, alcançou a varanda e foi resgatada. O relato faz parte do processo, a que VEJA teve acesso, que Raysa move contra o condomínio, exigindo reparação pela extraordinária sequência de erros, descaso e inércia que resultaram na tragédia em Surfside, cidadezinha colada a Miami, na Flórida. Até a quinta-feira 1º, uma semana depois do desastre, dezoito corpos haviam sido encontrados e 147 pessoas continuavam desaparecidas, entre elas Lorenzo, 5 anos, filho de mãe brasileira e pai italiano.

A mãe de Lorenzo, Raquel Oliveira, estava viajando na noite do desabamento. No Facebook, disse que entregou uma amostra do DNA da criança às autoridades, para reconhecimento. “Não sobrou nada, tudo desapareceu. É como se aquele pedaço do prédio nunca tivesse existido”, descreve a argentina Jacqueline Pakota, proprietária de dois apartamentos que virou uma espécie de porta-voz dos moradores, muitos deles latino-americanos. O empresário brasiliense Erick de Moura, 40 anos, perdeu tudo e está hospedado em um hotel, junto com outros sobreviventes, aguardando notícias de vizinhos com quem cruzava nos elevadores e áreas comuns nos últimos três anos. Moura escapou por pouco: resolveu dormir na casa da namorada, a também brasileira Fernanda Figueiredo, depois de assistirem a uma partida de futebol da Copa América. “Estava me despedindo na garagem quando ela falou que era tarde e eu não devia dirigir para casa. Isso salvou minha vida. Meu apartamento ficava justamente na coluna que desabou inteira”, conta, abalado.

Construído em 1981, o Champlain Towers é composto de dois prédios gêmeos. Uma inspeção em 2018 constatou desgastes na estrutura da face sul, especialmente no concreto sob a piscina e no acesso à entrada do condomínio, em decorrência de drenagem deficiente. Nada foi feito. Em março passado, Jean Wodnicki, presidente da associação de condôminos, alertou em carta sobre a “piora significativa” dos danos, que eram visíveis nos pilares da garagem e tendiam a “se multiplicar”. A carta orçava a reforma necessária em 20 milhões de dólares e previa seu início em alguns meses. Não deu tempo.

Além dos problemas estruturais, o condomínio que desabou sofria os efeitos de fenômenos climáticos. Boa parte da faixa costeira de Miami e arredores provém de aterros de pântanos e braços de mar que destruíram os manguezais, sua proteção natural. Entre 1950 e 2015, o governo da Flórida gastou 1,3 bilhão de dólares na compra de areia para repor o que as tempestades levavam, e, mesmo assim, em um século, o nível do mar subiu 30 centímetros — uma enormidade. Um plano mestre para o escoamento de águas pluviais divulgado em abril prevê investimento de 4 bilhões de dólares ao longo de quarenta anos em paredões de 2 metros de altura, tubulação subterrânea e poços, para controlar o nível das marés e evitar enchentes catastróficas.

O desastre, um dos piores da história do estado que mais congrega brasileiros fora do Brasil — cerca de 300 000 —, veio empanar um projeto em andamento para fazer de Miami um novo polo tecnológico, nos moldes do Vale do Silício californiano. O ano passado registrou investimentos de 1,9 bilhão de dólares em novos negócios na região metropolitana de Miami-­Fort Lauderdale, mais da metade deles em startups promissoras. Além da paisagem e do sol o ano inteiro, o sul da Flórida oferece aos empreendedores imposto de renda zero, baixos tributos nos negócios e a mão de obra formada por quatro universidades de ponta. O movimento ganhou força em dezembro, quando Delian Asparouhov, diretor de um fundo da Califórnia conhecido por investir em empresas inovadoras, tuitou de brincadeira: “Que tal nos mudarmos do Vale do Silício para Miami?”. O prefeito Francis Suarez, entusiasta da causa, respondeu na mesma hora: “Como posso ajudar?”. A troca de mensagens viralizou e Sua­rez se viu inundado de interessados em se instalar no sul da Flórida, estado que recebe mais de 600 novos residentes por mês. Resta ver o impacto que terá sobre esse fluxo renovador a imagem de um prédio residencial em escombros, debaixo dos quais pode haver mais de uma centena de mortos.

Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745

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