Maduro por um fio
Um deputado carismático recorre à Constituição para se declarar presidente interino, ganha apoio internacional e os venezuelanos voltam às ruas
Ao tomar posse como presidente de uma Assembleia Nacional semivazia e destituída de suas atribuições em 9 de janeiro, um dia antes da entronização de Nicolás Maduro em seu segundo mandato na Presidência da Venezuela, o pouco conhecido deputado Juan Guaidó parecia estar só fazendo o jogo de cena de um falso líder sem liderados. Não estava. Embalado pelo reconhecimento internacional que recebeu e que foi negado a Maduro — “usurpador” do posto máximo em eleições fraudulentas, segundo resolução da mesma sessão da Assembleia —, Guaidó lançou-se a uma roda-viva de comícios, discursos e entrevistas com o propósito de insuflar novo fôlego na combalida campanha oposicionista contra o governo.
E, na trilha de Guaidó, a Venezuela acordou. Na quarta 23, centenas de milhares de pessoas atenderam à convocação do deputado e tomaram as ruas de Caracas e outras cidades, no primeiro protesto em massa desde 2017. Ali na rua, cercado pela multidão, Guaidó sacou a Constituição e proclamou-se presidente interino. “Juremos, como irmãos, que não descansaremos enquanto não tivermos liberdade”, declarou.
Os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer Guaidó como presidente interino da Venezuela (seguidas as regras, ele tem de convocar eleições em trinta dias). “O povo venezuelano declarou-se corajosamente contra Maduro e seu regime”, justificou o presidente Donald Trump em um comunicado. O Itamaraty veio logo depois: deu aval ao “presidente encarregado” e prometeu apoiar “política e economicamente o processo de transição”. Caracas sempre esteve na linha de tiro de Jair Bolsonaro, que, em campanha, repisou a ameaça de o Brasil se tornar “uma nova Venezuela”. Depois de tomar posse em Brasília, coerente com seu discurso, Bolsonaro fez questão de receber uma comitiva da oposição venezuelana.
O chamado Grupo de Lima, formado por países da região (o Brasil inclusive) para monitorar a situação da Venezuela no calor de uma convulsão popular que produziu embates diários entre 2016 e 2017, aderiu em peso a Guaidó. A Organização dos Estados Americanos também endossou sua autoposse. A ONU, para não perder o hábito, ficou em cima do muro. “O que esperamos é que o diálogo seja possível e que se evite uma escalada que leve a um tipo de conflito desastroso”, ponderou o português António Guterres, secretário-geral da entidade. Na América Latina, só Cuba e Bolívia defenderam Maduro. O México do esquerdista Andrés Lopez Obrador esquivou-se de tomar partido, alegando que não interfere em assuntos internos de outros países.
Maduro reagiu cortando formalmente relações com os Estados Unidos. “Sou o único presidente da Venezuela”, bradou diante de um número de apoiadores menor do que o dos opositores. “Não queremos regredir ao século XX das intervenções gringas e dos golpes de Estado.” No balcão do Palácio de Miraflores, assinou documento exigindo a saída dos diplomatas americanos no país em 72 horas. Ele já ameaçara “rever os laços” com Washington um dia antes, em resposta a um vídeo postado pelo vice-presidente Mike Pence chamando-o de “ditador sem direito legítimo ao poder”. A movimentação internacional pró-oposição venezuelana começou no dia em que a Assembleia Nacional ungiu Guaidó e anunciou não reconhecer o segundo mandato de Maduro — obtido com eleições suspeitas de fraude e com oposicionistas encarcerados. As decisões da Casa são ignoradas pelo ditador, que transferiu o poder de legislar para uma Assembleia Constituinte moldada para obedecer a ele. No âmbito internacional, a sessão da Assembleia esvaziada emprestou legalidade à investida dos outros países para tentar pôr fim ao regime chavista.
O momento é altamente propício para quem prefere ver Maduro fora do poder. Ele está isolado na América Latina depois que quase todos os partidos amigos saíram derrotados de eleições na região. A perda de maior impacto para os chavistas foi a derrocada do PT, aliado de primeira hora de Hugo Chávez (recebido com efusão e bons negócios ao longo dos governos Lula) que até hoje mantém firme seu apoio a Maduro: a senadora Gleisi Hoffmann, sempre ela, fez questão de ir a sua posse, no começo do mês. O cerco foi se fechando com a ascensão de novos governos na Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai Equador e, agora, o Brasil — todos, neste momento, perfilados ao lado de Guaidó.
Para o governo brasileiro, enfraquecer Maduro logo no início do mandato é um trunfo diplomático. “A queda do governo chavista daria força à corrente ideológica encabeçada pelo chanceler Ernesto Araújo, que quer o Brasil como um líder do bloco antiglobalização”, diz Vinícius Rodrigues Vieira, professor de relações internacionais da USP e da Fundação Getulio Vargas. “Por outro lado, se ele ficar, deverá prevalecer o pragmatismo na diplomacia, que defende os interesses nacionais sem se preocupar com a orientação dos governos.”
No espectro mais amplo da geopolítica, o antichavismo atávico dos Estados Unidos intensificou-se com Trump — automaticamente, no balé de acertos das potências, Maduro aproximou-se da Rússia e da China, os dois países com os quais o falido governo da Venezuela consegue socorro financeiro. Em visita a Moscou em dezembro passado, Maduro anunciou um acordo de 6 bilhões de dólares em contratos com a Rússia nas áreas de petróleo e mineração de ouro. Reagindo aos últimos acontecimentos, Serguei Ryabkov, vice-chanceler russo, acusou Washington de “empurrar a sociedade venezuelana para o abismo de uma sangrenta guerra civil”.
A rapidez com que a oposição ganhou fôlego aponta para uma ação externa coordenada em sua disposição de encostar Maduro na parede. A questão é: até que ponto os países pró-Guaidó estão dispostos a interferir? Trump afirmou que “todas as opções estão na mesa”. Inclusive o uso de força militar? “Todas as opções estão na mesa”, repetiu aos repórteres, sem entrar em detalhes. Em Brasília, onde ocupava a Presidência enquanto Jair Bolsonaro estava em Davos, na Suíça, o vice Hamilton Mourão foi mais cauteloso: “O Brasil não participa de intervenção” e, na hipótese de Guaidó vir a ser preso, o governo “só vai protestar”. A posição equilibrada de Mourão decorre do fato inarredável de que Brasil e Venezuela repartem uma fronteira de 2 000 quilômetros. Todo o cuidado é pouco.
Engenheiro de 35 anos, eleito pela primeira vez em 2015 e pupilo de Leopoldo López, o principal líder oposicionista da Venezuela, preso desde 2014, Guaidó tem a seu favor o mesmo fator que vem ajudando a eleger pessoas para cargos públicos em toda parte, inclusive no Brasil: a novidade. Cansada das figuras de sempre da oposição e de suas brigas internas, a população encerrou-se em casa depois que, há dois anos, as passeatas em série não deram em nada, a oposição não conseguiu se unir e a violência da repressão policial resultou em 120 mortos. Desta vez, a Guarda Nacional também foi mobilizada para conter os protestos, mas, pelo menos por enquanto, tem agido com menos rigor. Há rumores sobre mais de uma dezena de mortos em diversos pontos do país, embora sem confirmação. O próprio Guaidó chegou a ser removido de seu carro e levado para destino ignorado por agentes da polícia secreta; foi liberado em menos de uma hora.
O discurso de Guaidó é de conciliação e esperança. Ele justificou a autoposse com uma cláusula da Constituição que coloca o líder da Assembleia na Presidência se existe “vácuo” — e este se formou quando Maduro foi declarado “usurpador”. Um de seus primeiros gestos veio de um cálculo político preciso: prometeu anistia aos militares que passarem para seu lado, com o intuito de minar o grande pilar de apoio do ditador. Horas depois, 27 soldados debandaram de seu quartel com um carregamento de armas, entrincheiraram-se em uma favela de Caracas e divulgaram vídeos convocando a uma rebelião geral, até serem capturados e presos. Guaidó quer que os diplomatas americanos expulsos permaneçam no país, credenciados não mais pelo governo chavista, mas pelo dele — um gesto simbólico de impacto.
Político de centro-direita, Guaidó fala de liberdade de imprensa, melhora da economia e uma luz no fim do túnel da miséria e do desespero. Resultado: além de contarem com a classe média, que sempre combateu Maduro, as últimas manifestações têm presença maciça de pobres desgostosos com o chavismo. Nos protestos da quarta 23, moradores de conjuntos habitacionais no centro de Caracas apoiavam, da janela, os manifestantes na rua. Na noite anterior, o grito de “Fora, Maduro” ecoou em diversas favelas e subúrbios da capital. “Guaidó trabalha duro, é humilde e pode nos unir”, diz Lilian Tintori, mulher do líder preso Lopez.
Enredada em uma teia infernal de má administração, corrupção, sanções externas e queda do preço do petróleo, produto essencial para sua economia, a Venezuela é um país destroçado. Falta comida, falta remédio e falta dinheiro. A criminalidade explodiu. A inflação deve chegar a 10 000 000% até o fim do ano, segundo o FMI. Além de parcerias com China e Rússia, Maduro mantém parte dos contratos com os Estados Unidos, que compram uma média de 500 000 barris por dia do barato óleo venezuelano (metade do que já foi). A fonte, no entanto, pode secar com o rompimento, um cenário com o qual as refinarias americanas já trabalham.
Em razão da crise e da falta de perspectivas, 3 milhões de venezuelanos — 10% da população — foram embora. Quase 100 000 cruzaram a fronteira do Brasil em Roraima, onde refugiados se amontoam, numa crise humanitária sem solução no horizonte. “Na ausência de um polo de poder claro na Venezuela, o fluxo de pessoas deve aumentar. Transições geram instabilidade, e o governo brasileiro precisa montar logo um plano de contingência”, adverte o professor Rodrigues Vieira, da USP e da FGV.
Por mais que o antichavismo se anime com o fenômeno Guaidó, a pedra fundamental de sustentação de Maduro segue firme: as Forças Armadas, instituição da qual se originou o tenente-coronel Hugo Chávez, o fundador da República Bolivariana, que morreu de câncer em 2013. O apoio hoje em dia tem pouca motivação ideológica e muita ambição pelo vil metal: Maduro instalou a elite militar nos lucrativos setores do petróleo e da distribuição de alimentos, vital em uma situação de desabastecimento agudo. Sentados sobre essas regalias, os oficiais acumulam fortunas. “Os militares não têm incentivo para retirar o apoio a Maduro porque, se o fizerem, estarão sacrificando sua influência econômica e política”, diz Diego Moya-Ocampos, especialista em Venezuela em uma empresa de análise de risco.
O saco de gatos oposicionista também ajuda a manter Maduro no Miraflores. “Um dos motivos pelos quais acho pouco provável que o regime caia de imediato é a divisão da oposição”, diz Matias Spektor, coordenador do departamento de relações internacionais da FGV. Para Spektor, o Brasil tem calibre para assumir papel preponderante nas negociações agora, seja pressionando Rússia e China no âmbito dos Brics, em que são parceiros, seja viabilizando uma hipótese audaciosa: a abertura de conversas entre os militares daqui e os de lá. “Existe um precedente: em 1996, no Paraguai, o Exército brasileiro entrou em campo e convenceu um grupo de oficiais golpistas a desistir da empreitada”, lembra Spektor. Para o professor Vieira, “Maduro vai se enfraquecer paulatinamente, à medida que os militares forem enxergando mais vantagens do outro lado”. Resta saber quanto tempo leva o “enfraquecimento paulatino”.
Publicado em VEJA de 30 de janeiro de 2019, edição nº 2619
Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br