Kamala injeta animação contra Trump, mas jogo nos EUA segue indefinido
Ninguém arrisca palpite para a eleição de novembro
Faltando noventa dias para as eleições nos Estados Unidos, a substituição de Joe Biden por Kamala Harris na chapa democrata mudou significativamente o rumo da campanha eleitoral. Do lado democrata, até recentemente habitado por um candidato que a maioria não queria e que mais se escondia do que se apresentava em público, Harris caiu na estrada, em comícios em série carregados de animação, rap e risadas (a dela mesma, uma gargalhada que surpreende e espanta, virou marca registrada). Em um deles, na terça-feira 6, na Filadélfia, apresentou seu vice, o governador de Minnesota, Tim Walz — um senhor bonachão e bem-humorado, em tudo e por tudo diferente do intenso republicano JD Vance. Ela tem pressa e quer imprimir seu lema de “governo do futuro” na mente do eleitorado o quanto antes. Do lado republicano, Donald Trump tem a desvantagem de continuar o mesmo, evocando as glórias (muitas ficcionais) de seu primeiro mandato e a imagem de fortão capaz de aniquilar as elites, com um fato novo: a necessidade de reformatar completamente o alvo de seus ataques.
Energizado pela mudança, o comitê democrata vem batendo recordes de arrecadação, um movimento puxado não só por grandes doadores, como também por filiados comuns que ansiavam por renovação. Harris destaca em cada discurso e entrevista seu passado de promotora e procuradora a serviço da lei e do combate ao crime, em contraponto a Trump, condenado em maio por fraude fiscal. Também endureceu a postura contra a imigração ilegal — o bicho-papão que tira o sono dos americanos —, citando as medidas recentes tomadas pelo governo Biden para fechar a fronteira, uma tentativa de neutralizar um de seus pontos fracos: colocada à frente da força-tarefa para tratar da questão, pouco ou nada fez de relevante. Uma das viradas mais bem-sucedidas da campanha democrata foi a invenção justamente do pouco conhecido Walz: em uma entrevista, disse que Trump e Vance são “esquisitos” (weird) — e o termo pegou. Em anúncios, memes e vídeos na internet, o ex-presidente como ameaça à democracia, ideia constantemente martelada por Biden que pouco dizia ao crucial eleitor branco de classe média baixa, foi substituído por mensagens bem-humoradas sobre sua esquisitice. “É uma ideia simples, com palavras que fazem parte do cotidiano das pessoas”, diz David Karpf, especialista em comunicação da Universidade George Washington. “Até agora, Trump não conseguiu rebater de forma eficaz.”
Com Walz, Harris parece querer abrir a porta da sua Casa Branca para o sujeito comum, simpático, de fala simples, nascido e criado no interiorzão, pai dedicado — tudo o que ela, fruto da progressista Califórnia, não é. Ex-professor de geografia, ex-treinador de futebol americano que fez do time da escola campeão estadual, ex-integrante da Guarda Nacional, apreciador da caça e da pesca, o governador de 60 anos defende causas liberais: garantiu em seu estado o direito ao aborto, restringiu o porte de armas e apoiou a legalização da maconha. “Ele demonstra uma combinação de fatores muito interessante. Tem experiência militar e uma identidade rural do Meio-Oeste. Ao mesmo tempo, é porta-voz eficiente de valores progressistas”, diz Cary Coglianese, professor de ciências políticas da Universidade da Pensilvânia.
Diante dos novos adversários, a dupla Trump-Vance tenta calibrar o contra-ataque. Harris vem sendo pintada como ultraesquerdista, distante das aspirações do cidadão comum e um perigo para a preservação dos valores americanos. “Como Kamala Harris, Tim Walz é um perigoso extremista liberal, e o sonho californiano de Harris-Walz é o pesadelo de todos os americanos”, disparou Karoline Leavitt, porta-voz da campanha trumpista, em comunicado. O ex-presidente também fez referências racistas à rival, filha de pai negro e mãe indiana (“Ela antes promovia apenas a herança indiana. Eu mesmo nem sabia que ela era negra até alguns anos atrás. Agora quer ser conhecida como negra”, disse), e frequentemente ridiculariza sua “risada maluca”.
A entrada de Harris na corrida pela Casa Branca afetou, como era de se esperar, a posição de Trump nas intenções de voto, em que ele aparecia invariavelmente à frente de Biden desde o debate, em junho, que escancarou a debilidade do presidente de 81 anos. Segundo o agregador de pesquisas Five ThirtyEight, a candidata democrata, que apareceu empatada com o adversário no momento seguinte ao lançamento da candidatura, agora avançou um pouco e tem 45% das preferências, ante 43% dele. Mas a briga continua apertadíssima e talvez permaneça assim, porque a polarização política divide a nação ao meio, a maioria dos americanos já decidiu em quem vai votar e o contingente dos indecisos é pequeno e volúvel. Nesse cenário, a dupla Harris-Walz teve impacto positivo entre as mulheres (segundo levantamento do New York Times/Siena College, a democrata tem vantagem de 14 pontos entre as eleitoras, que nunca engoliram Trump, mas também não se animavam a sair de casa para votar em Biden) e os jovens, outro nicho crucial. Mas provavelmente terá dificuldade para cooptar a população rural dos estados pêndulos — aqueles que de fato decidem a eleição — que não bateu o martelo pelo republicano, mas tem aversão a discursos de esquerda. O mais provável é que o panorama siga incerto — até porque, segundo os analistas, a maioria dos eleitores presta pouca ou nenhuma atenção à campanha eleitoral até os estágios finais da corrida. Resumindo: até novembro, tudo pode acontecer.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905