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Justiça do Chile reabre investigações em torno da morte de Pablo Neruda

Artista pode ter sido envenenado pela ditadura de Augusto Pinochet

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h26 - Publicado em 2 mar 2024, 08h00

De Pablo Neruda, no capítulo XV da obra mais celebrada do poeta chileno, o Canto Geral: “Renasci muitas vezes, desde o fundo de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio das eternidades que povoei com as minhas mãos, e agora vou morrer, sem nada mais, com terra sobre o meu corpo, destinado a ser terra”. Não seria o caso de dizer, como no poema, que Neruda tenha metaforicamente renascido — mas ele parece estar pronto para ser enterrado uma segunda vez. Na semana passada, a Corte de Apelações de Santiago reabriu as investigações sobre a morte de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, seu nome de batismo, apenas doze dias depois do golpe militar de 11 de setembro de 1973, que depôs o presidente socialista Salvador Allende para a ascensão autoritária de Augusto Pinochet.

De acordo com o atestado de óbito, Neruda teria morrido de metástase de um câncer de próstata, em estado de caquexia, o que pressuporia extrema perda de peso e massa muscular. Em 2011, contudo, o motorista do escritor denunciou um suposto envenenamento. No ano passado, depois de uma sucessão de estudos forenses e análise de assinaturas de documentos médicos, e muito vaivém, deu-se como encerrado o ruidoso caso. Ele teria morrido naturalmente, aos 69 anos — e a proximidade com a tragédia de Allende, de quem era amigo e colaborador, fora mera coincidência.

O HORROR - O golpe militar de 11 de setembro de 1973: deposição do socialista Allende, amigo do escritor
O HORROR - O golpe militar de 11 de setembro de 1973: deposição do socialista Allende, amigo do escritor (./AFP)

A pressão política — Neruda é um dos símbolos do período de Allende — forçou o novo passo, agora. Decidiu-se abrir perícia numa frente em especial: em 2017, análises indicaram a presença, em um dos dentes molares do artista, da bactéria Clostridium botulinum, embora não fosse possível identificar a origem. Estudos mais aprofundados, porém, abriram uma nova brecha de investigação: o tipo identificado é o Alaska E43, o mais mortal, e teria “causa endógena”, ou seja, estaria no organismo de Neruda antes de ele parar de respirar. Somou-se a essa revelação um outro fato: Neruda não morreu magérrimo como anunciado, é o que apontam as marcas do cinto de calça levado ao esquife. É o que mostram, também, as fotos feitas pelo brasileiro Evandro Teixeira, na Clínica Santa Maria, com a viúva Matilde debruçada no caixão aberto. “A decisão da Justiça é boa notícia para os descendentes de Neruda, mas também para os direitos humanos, tão vilipendiados no mundo todo”, diz Elizabeth Flores, advogada da família.

Como nem tudo são flores, a segunda morte de Neruda — que pode, sim, ter um significado ideológico em um país em permanente polarização — dá as mãos para uma faceta incômoda do Nobel de Literatura de 1971, atalho para seu “cancelamento” (muitos chilenos preferem louvar, hoje, Gabriela Mistral, também vencedora do Nobel). Há bons motivos para o julgamento de Neruda: ele abandonou, logo ao nascer, a filha com hidrocefalia, fruto do seu primeiro casamento. A menina morreria com 8 anos de idade. Em Confesso que Vivi, autobiografia lançada postumamente, ele admite ter estuprado uma mulher no Ceilão, em 1929, quando servia como diplomata. Há uma certeza: em serenidade ele não estará — “O poeta nasce da paz como o pão nasce da farinha”, escreveu —, porque o jogo da política e dos costumes não é para amadores.

Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882

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