Israel amplia alvos, Irã reage, e paz no Oriente Médio fica ainda mais distante
Bombas não conseguirão deter a marcha da insensatez na região
Durante os meses seguidos em que as Forças Armadas de Israel despejaram bombas e tiros na Faixa de Gaza, caçando e desmantelando o grupo palestino Hamas à custa de enorme sofrimento da população civil, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu driblou como pôde — às vezes beirando a grosseria — diversas propostas de cessar-fogo. Agora que a origem dos ataques — a incursão-surpresa de terroristas do Hamas no território israelense que resultou na morte de 1 200 pessoas e no sequestro de 250 — completa um ano, entende-se o motivo: sua intenção era exatamente o oposto. Ao longo da última semana, o governo israelense, sem parar de bombardear Gaza, pôs em marcha uma investida agressiva e simultânea contra as demais milícias que o Irã, seu inimigo número 1, cultiva e arma nas redondezas.
Em demonstração de força, seus mísseis caíram sobre os houthis, no Iêmen, sobre arsenais guardados por aliados na Síria e, principalmente, sobre o Hezbollah, o poderoso exército informal estabelecido no Líbano, que teve boa parte de sua liderança dizimada em um bombardeio que pôs abaixo quatro prédios em Beirute. De explosão em explosão, Netanyahu vai se impondo na guerra ao destilar medo e humilhação entre os adversários — uma tática eficaz no curto prazo que, no entanto, em nada contribui para a busca de uma paz duradoura no Oriente Médio.
Reeditanto a investida à base de “choque e espanto” (shock and awe em inglês, definido como “uma estratégia militar fincada no uso de poderio esmagador e extraordinária mostra de força para paralisar o inimigo no campo de batalha e destruir sua disposição de lutar”) com que o governo de George W. Bush diluiu a capacidade de reação ao invadir o Iraque em 2003, as tropas israelenses desencadearam uma arriscada ofensiva total, bem planejada e bem executada, mas que ainda não se sabe onde vai parar. Na segunda-feira 30, batalhões de elite transferidos de Gaza entraram por terra no sul do Líbano — a primeira vez, no atual conflito, que tropas cruzam a fronteira para outro país. No mesmo dia, ao pôr do sol, o Irã, reagindo à morte da cúpula do Hezbollah e de outros líderes terroristas (nas palavras oficiais, “uma resposta legal, racional e legítima aos atos terroristas do regime sionista”), disparou contra Israel quase 200 mísseis balísticos, que riscaram os céus de Tel Aviv, Jerusalém e outras cidades e intensificaram o perigo de uma disseminação regional do conflito.
No primeiro dia e meio da invasão terrestre do Líbano, a IDF, sigla em inglês das forças militares israelenses, anunciou a morte de oito soldados, um número significativo, indício de que a nova frente de batalha será mais dura do que em Gaza. De fato, o Hezbollah, misto de partido político e milícia paramilitar criado na esteira da invasão israelense do Líbano, em 1982, com o explícito fim de destruir Israel, tem mais soldados treinados (fala-se em 15 000) e bem maior poder de fogo do que o Hamas. Sua reputação de protagonista de respeito no front do Oriente Médio, no entanto, sofreu um baque com os golpes perpetrados por Israel nos últimos dias, que primeiro acionou explosivos contrabandeados em pagers e walkie-talkies, ferindo milhares de militantes e desmantelando a rede de comunicação das lideranças. Aproveitando esse vácuo, bombardeou ainda o refúgio subterrâneo em Beirute e matou a cúpula do grupo, inclusive seu comandante há mais de trinta anos, Hassan Nasrallah.
Classificada de “ataque terrestre limitado, localizado e direcionado”, a incursão de tropas no Líbano pode ser o prenúncio de uma operação maior. Israel está concentrando soldados e tanques na região fronteiriça e segue disparando contra bases do Hezbollah: em três dias, afirma ter alvejado ao menos 1 300 instalações. Enquanto engaja suas forças em combates diretos no Líbano, o governo de Israel se prepara para revidar a chuva de foguetes iranianos — que, como já havia acontecido com um ataque anterior, em abril, causou poucos danos relevantes. Uma pessoa morreu, duas ficaram feridas e o Domo de Ferro, seu sistema de defesa, interceptou quase todos os mísseis, embora vídeos divulgados nas redes sociais mostrem alguns caindo em solo israelense, um deles em frente a um shopping center. “O Irã cometeu um grande erro e vai pagar”, prometeu Netanyahu, ao antecipar o possível bombardeio de alguma instalação iraniana crucial, como as que produzem petróleo e gás. “A questão que preocupa é: até onde vai essa espiral de violência?”, indaga Richard Stoll, especialista em Oriente Médio da Universidade Rice, no Texas. “É a situação mais grave em décadas.”
A ofensiva afeta os 21 000 brasileiros que residem no Líbano. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, 3 000 já procuraram a embaixada em Beirute com pedido de repatriação. Batizada de Raízes do Cedro, a operação foi autorizada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e teve início na quarta-feira 2, com o envio de um avião KC-30 com capacidade para 220 pessoas. O Itamaraty realizou ação semelhante na última guerra entre Israel e o Hezbollah, em 2006, e calcula que sejam necessários até vinte voos para concluir a retirada. Ao iniciar o resgate, Lula mais uma vez condenou a posição israelense. “É inexplicável que o Conselho da ONU não tenha autoridade moral e política de fazer com que Israel se sente numa mesa para conversar, em vez de só saber matar”, afirmou.
Nos Estados Unidos, principal e crucial aliado de Israel, que vinha condenando a crise humanitária em Gaza, onde mais de 41 000 pessoas já morreram, e viu com reservas a ofensiva contra o Hezbollah, sobre a qual foi avisado com pouquíssima antecedência, os mísseis disparados pelo Irã tiveram o efeito de produzir novas e enfáticas manifestações de apoio. O presidente, Joe Biden, e a vice e candidata à Casa Branca, Kamala Harris, participaram de uma reunião emergencial, e dois navios americanos estacionados no Oriente Médio neutralizaram ao menos dez foguetes iranianos. “Não se enganem, os Estados Unidos apoiam totalmente Israel”, afirmou Biden. Nos bastidores, o governo americano vem fazendo de tudo para conter o ímpeto de Netanyahu, sem grande sucesso. “Biden não quer deixar uma conflagração de proporções gigantescas como legado de governo”, diz George Seay, do Clements Center for National Security, em Austin, no Texas. Em circunstâncias normais, o mundo a esta altura estaria de olho nos Estados Unidos, contando com seu poder de influência para moderar o conflito. No entanto, não há indícios de que isso vá acontecer.
A um mês das eleições de 5 de novembro, Biden é o típico lame duck — expressão usada para presidentes em fim de mandato, que já não mandam grande coisa. Ao longo da guerra em Gaza, ele entrou em choque publicamente com Netanyahu, que ignorou solenemente seus esforços em favor de uma trégua. Para piorar, democratas e republicanos travam uma disputa acirradíssima na qual o primeiro-ministro israelense tem clara preferência — e ela vai para Donald Trump. Os dois se deram muito bem no primeiro mandato trumpista, quando a embaixada americana foi transferida para Jerusalém, as Colinas de Golan, tomadas da Síria, foram anexadas com a anuência da Casa Branca, e os Acordos de Abraão, firmados em 2020, restabeleceram relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos e Bahrein. Tampouco da ONU, que tem tropas de dissuasão postadas no sul do Líbano, se pode esperar alguma iniciativa eficaz pelo fim da violência: o secretário-geral António Guterres, que vive às turras com o governo israelense, foi declarado persona non grata e proibido de entrar em Israel por não ter condenado “de forma inequívoca” o ataque do Irã.
Com sua audaciosa disposição de desarticular simultaneamente os grupos inimigos que se propõem a destruir Israel e formam o “eixo da resistência” patrocinado pelo Irã, Netanyahu inaugurou uma nova forma de tratar a ameaça do terrorismo, ainda mais implacável do que a dureza com que o país sempre encarou a questão. Para isso, cruzou uma série de linhas vermelhas, como são chamadas as barreiras invisíveis que preceitos éticos, morais, diplomáticos, humanitários e de pura e simples cortesia erguem contra ações mais truculentas. A mais dramática foi a que colocou em segundo plano a vida dos cerca de sessenta reféns que ainda se supunham vivos em poder do Hamas — diante da dimensão da operação armada em andamento, pouca gente acredita que ainda possam ser resgatados. Igualmente trágica tem sido a decisão de explodir refúgios terroristas deliberadamente resguardados pela população civil em ataques qualificados de cirúrgicos, que sempre matam indiscriminadamente e desalojam multidões — um nível de ferocidade que embaça a integridade, altamente alardeada, das Forças Armadas do país. No Líbano, em poucos dias de bombardeios, o governo informou que ao menos 1 400 pessoas morreram e mais de 1 milhão fugiram de casa, o que equivale a 20% da população total.
O governo israelense pulverizou ainda limites preestabelecidos ao rejeitar, sem subterfúgios, o peso da influência dos Estados Unidos em decisões cruciais e dá mostras de estar disposto a pagar para ver a reação do Irã a suas investidas, descartando a frequente e geral preocupação com a possibilidade de que o conflito se espalhe pela região. Partir para o apocalipse, em um primeiro momento, restaura o poder de um primeiro-ministro que parecia estar a um passo de ter a carreira política encerrada. “Trata-se de uma reviravolta impressionante”, diz Bruce Hoffman, especialista em terrorismo e segurança da Universidade de Georgetown, em Washington. “A inteligência israelense superou o desastre de um ano atrás, quando foi surpreendida pelo Hamas, e recuperou sua capacidade de dissuadir e amedrontar inimigos.” Destruir as bases e devastar as fileiras de seus adversários, porém, não garantirá segurança e tranquilidade a Israel enquanto o destino dos palestinos sem terra não for equacionado — e as fracassadas invasões ao Líbano em 1978, 1982 e 2006 comprovam que superioridade bélica não é suficiente para exterminar o terror islâmico, que sempre ressurge mais forte. Bombas não conseguirão deter a marcha da insensatez no Oriente Médio.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913