Israel, à frente de todo o mundo na corrida pela imunização em massa
Netanyahu viu na vacinação uma chance de ganhar votos e montou uma poderosa campanha
Pode não parecer, especialmente em Brasília, mas há casos em que usar politicamente a vacina contra a Covid-19 não prejudica a população — pelo contrário, a beneficia. Em pleno inferno astral, com a perspectiva de enfrentar a quarta eleição em dois anos e um explosivo processo por corrupção pairando sobre sua cabeça, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, viu na aplicação do imunizante da Pfizer-BioNTech sua chance de amealhar preciosos pontos eleitorais. Foi à luta: preparou a infraestrutura, montou uma vasta rede de postos, mobilizou a população — inclusive o pessoal da saúde, que abdicou com prazer de férias e folgas — e firmou um acordo com o laboratório pelo qual, em troca de prioridade de entrega, Israel se tornaria praticamente um comercial planetário da eficácia do produto. Em 19 de dezembro, Netanyahu em pessoa tomou a primeira dose. Duas semanas depois, no dia 31, 10% dos israelenses já estavam vacinados. Mais duas semanas e a proporção dobrara, para 20%. A previsão é que toda a população adulta esteja vacinada até o fim de março.
Enquanto boa parte do mundo — o Brasil incluído — ainda patina na vacinação em massa, Israel está no topo do ranking de inoculações (veja o quadro). É verdade que as condições do país ajudam: são apenas 9 milhões de pessoas vivendo em 21 000 quilômetros quadrados — uma área do tamanho de Sergipe servida de boas estradas — e atendidas por um serviço de saúde de alta qualidade. Mesmo assim, Israel foi das nações que mais sofreram com o novo coronavírus: contabiliza 517 000 casos e quase 4 000 mortos, apesar da imposição de lockdowns rigorosos. A certa altura, manifestantes foram protestar na porta da residência oficial do primeiro-ministro pelo que viam como uma resposta fraca e ineficaz à pandemia.
Com o plano de vacinação bem-sucedido, “Bibi” espera virar a mesa e reconquistar maioria parlamentar sólida na próxima eleição, prevista para abril. No início do mês, ele revelou haver firmado com a Pfizer um contrato para, em troca de 10 milhões de doses (lembrando que cada pessoa tem de tomar duas), entregar ao laboratório dados sobre gênero, idade, estado de saúde e eventuais efeitos colaterais de todos os imunizados, uma massa de informações que reforçará muito o portfólio da vacina. Com um depósito dotado de freezers nas proximidades do aeroporto para estocar o produto, entrega garantida de 400 000 a 700 000 doses diárias e facilidade de distribuição pelo país, mais de 72% dos idosos acima de 62 anos já haviam sido vacinados em meados de janeiro.
Em Israel, toda a população é coberta por quatro convênios de saúde público-privados. O sistema de saúde é conectado a uma rede digital que contém o histórico médico de 100% dos pacientes, desde o nascimento. “A rede em peso embarcou na campanha extraordinária de vacinação, trabalhando 24 horas para atender todos”, diz Shuli Brammli-Greenberg, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade Hebraica de Jerusalém. Tendas foram montadas em estacionamentos, parques e outros locais e as aplicações estão disponíveis 24 horas por dia. Por ora, as prioridades são pessoas com mais de 60 anos, trabalhadores da saúde e quem tem problemas médicos preexistentes. Diante da constatação de que o frasco geralmente tem mais do que as cinco doses informadas, o governo permitiu que a dose excedente seja aplicada fora dos grupos prioritários, promovendo uma imunização paralela de quem não está sob risco e apressando o resultado final.
Netanyahu, que se diz muito amigo do CEO da Pfizer, Albert Bourla — “Conversamos toda hora” —, não informou quanto pagou pela vacina — fala-se em 30 dólares por dose, bem acima da média. Em paralelo, o governo também está negociando novos suprimentos vindos da britânica AstraZeneca e da americana Moderna. Por mais que se corra com a vacinação, é possível que um novo lockdown, baixado em dezembro diante de um pico de contágio, ainda dure um bom tempo, entre outros motivos em decorrência de certa resistência à vacina por parte da população árabe (21% do total), temerosa de que sua fabricação não siga os preceitos da religião muçulmana. “Além disso, a imunização só ocorre uma semana depois da segunda dose”, lembra o ministro da Saúde, Yuli Edelstein.
Outra dor de cabeça são as comunidades judaicas ultraortodoxas, que costumam ignorar solenemente o uso da máscara e o isolamento social — nelas, a taxa de contágio tem sido cinco vezes maior. Como nem tudo é perfeito, a imunização em massa israelense não contempla os 5 milhões de palestinos em territórios ocupados na Cisjordânia e em Gaza (muitos deles com emprego em Israel), que têm redes próprias de saúde e onde a vacina ainda não chegou. Nada disso, no entanto, deve tirar o brilho do supervacinador Netanyahu, há doze anos ininterruptos no poder e com apetite para muitos mais.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721