Guerra expôs fracasso do projeto extremista de Netanyahu, diz especialista
Boaz Atzili diz que premiê de Israel foi parcialmente responsável pela incursão do Hamas e defende que morte de civis é injustificável de ambos os lados
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, após ter um mandato de 12 anos interrompido por escandalosas acusações de corrupção, conseguiu retornar ao poder no final do ano passado devido ao apoio de uma coalizão que compõe o governo mais direitista da história israelense. A plataforma de três partidos — Sionista Religioso, Força Judaica e Noam — defende a anexação de assentamentos judeus na Cisjordânia, uma medida ilegal perante a comunidade internacional, a deportação de árabes israelenses considerados “desleais” e o controle político do sistema judicial (uma mão na roda para o processado Netanyahu). Antes da recente incursão terrorista do Hamas, que chega ao quinto dia nesta quarta-feira, 11, o país se via no epicentro de uma das maiores crises políticas das últimas décadas, com uma onda de protestos contra a controversa e perigosa reforma do Judiciário. Havia ainda uma escalada de violência desde o início deste ano, com o avanço dos assentamentos israelenses na Cisjordânia. “Distraído, Netanyahu permitiu uma degradação da prontidão militar em postos avançados na fronteira de Gaza, já que soldados eram necessários em outros cantos”, diz a VEJA Boaz Atzili, cientista político e especialista em segurança no Oriente Médio da American University. E, na tentativa de deslegitimar a Autoridade Palestina, reconhecida internacionalmente, Bibi, como é conhecido o premiê israelense, consentiu também o crescimento do Hamas, na esperança de minar a solução de dois Estados. “A guerra em curso é, antes de mais nada, um fracasso do governo de Netanyahu”, avalia Atzili. Em entrevista a VEJA, o especialista procura destrinchar as origens do conflito entre Hamas e Israel, e prever o que pode acontecer daqui em diante.
A violência entre as forças israelenses e colonos judeus e a população palestina tem aumentado ao longo do ano. O que o Hamas tem a ganhar com este ataque e o subsequente conflito com Israel? Pode haver algum objetivo em termos de política interna, como prevalecer sobre a Autoridade Palestina, controlada pelo mais moderado partido Fatah, na Cisjordânia. Mas penso que o objetivo principal é vingança contra o projeto extremista do atual governo israelense, mesmo ao preço de uma devastação total da Faixa de Gaza, que o Hamas sabe ser o resultado provável de sua incursão em grande escala.
Como esta guerra impacta o maior desafio da região, a espinhosa questão de como israelenses e palestinos, milhões dos quais vivem sob ocupação, podem conviver com direitos iguais? A probabilidade disso já era extremamente baixa, mesmo antes deste conflito. O atual governo israelense adotou, mais do que nunca, uma ideologia de supremacia judaica. Do outro lado, o Hamas, que não reconhece Israel, carrega a ideologia de supremacia muçulmana. Embora os atos terroristas do grupo palestino sejam condenáveis, é possível dizer que ambos os lados se radicalizaram, escanteando os políticos moderados israelenses e enfraquecendo a Autoridade Palestiniana. Agora, a probabilidade é zero. Cada lado do conflito verá seus piores pesadelos se materializarem.
O Hamas foi criado nos anos 1980 e atua, desde então, numa toada extremista, concretizada hoje em atos terroristas. Por décadas, porém, o inimigo número 1 de Israel continuou sendo o Fatah. Por quê? Desde aquela época, o governo israelense apoia discretamente não só o Hamas, mas movimentos palestinos radicais, como na esperança de debilitar o Fatah e deslegitimar a causa por um Estado palestino. Um terrível erro estratégico, como evidencia esta guerra. Agora, dizer que Israel “criou” o Hamas é um exagero. O grupo também foi muito influenciado pela Irmandade Muçulmana no Egito. Mesmo sem o apoio tácito do governo israelense, algo semelhante provavelmente teria surgido na época da Primeira Intifada (1987), contra os assentamentos judeus, que terminou no final de 1993, por ocasião dos Acordos de Oslo.
O ataque do Hamas a Israel ocorreu um dia após o 50º aniversário da Guerra do Yom Kippur. Como estes dois conflitos se comparam? Existem muitos paralelos. No erro total da inteligência israelense, na arrogância e recusa do governo em ouvir avisos externos; em pesadas baixas israelenses nos primeiros dias de combate. Mas também existem diferenças importantes: em 1973, Israel enfrentou dois fortes exércitos convencionais, apoiados por uma superpotência – a União Soviética. Agora, enfrentam um ator não estatal, cujo poder limitado. Há cinquenta anos, o ataque foi contra soldados; desta vez, recaiu sobre civis em comunidades fronteiriças. Talvez mais importante: o Egito iniciou a última guerra como um meio torto para negociar a paz a partir de uma posição de poder. Agora o Hamas não está interessado em negociações para a paz. Foi um ataque kamikaze.
Com ataques por terra e ar, o Hamas matou mais de 1 mil israelenses e fez ao menos 150 reféns. O que explica o fracasso inicial das defesas de Israel? Como isso pode impactar o apoio ao governo? A guerra em curso é, antes de mais nada, um fracasso de Netanyahu. O governo é disfuncional e suas suas prioridades estavam em outro lugar – na defesa e expansão dos assentamentos judeus na Cisjordânia –, o que afastou forças das linhas da frente de Gaza. Bibi também rejeitou avisos vindos dos seus militares, do Egito e de outros lugares. A resposta do exército israelense foi lenta e confusa. É preciso admitir que, operacionalmente, o Hamas teve grande sucesso. Agora, há ainda mais clamor contra Netanyahu, inclusive de muitos dos seus apoiadores. O país está mobilizado para a guerra e não está claro se existe um mecanismo que possa removê-lo do poder neste momento, mas pode ser o começo de seu fim.
Os EUA manifestaram apoio a Israel, enviando navios de guerra, jatos militares e prometendo mais munições para a “luta contra o terrorismo”. Como você espera que outros países se insiram no conflito? O Conselho de Segurança da ONU está paralisado, como sempre. Mas, por enquanto, parece haver um forte apoio a Israel no Ocidente, e o mesmo se observa em outros países, como a Índia. Isso pode não durar se (ou melhor, quando) os ataques a Gaza resultarem na morte de milhares de civis. O Egito e o Qatar, normalmente, servem como mediadores para alcançar um cessar-fogo, mas ainda estamos muito longe disso.
Como o conflito em Israel se insere na onda de guerras pipocando pelo mundo? A chamada “Ordem Mundial Liberal”, que depois da Guerra Fria prometeu um período de paz duradoura, teve muitos problemas, mas a ascensão do populismo iliberal à esquerda, mas especialmente à direita, torna o mundo um lugar muito mais perigoso.
Para onde vai essa guerra? Atacar civis inocentes nunca é correto, e quando isso é feito deliberadamente em tão grande escala, como na operação do Hamas, é horrível. É compreensível que Israel se defenda, mas isto não isenta o país do seu dever de ser tão cuidadoso quanto possível para minimizar o sofrimento dos civis em Gaza. E não exime nenhuma das partes do dever de oferecer um horizonte pacífico. Existem duas nações neste espaço, que não vão a lugar nenhum, e precisarão aprender a viver lado a lado ou juntas. A longo prazo, não há alternativas senão a paz.