Governo italiano planeja construção da maior ponte suspensa do mundo
A enorme obra prometida no país é típica do uso de projetos monumentais, com um pé no passado, para exaltar regimes autoritários
Erguer monumentos vistosos, sejam eles edifícios, museus ou esculturas, é uma maneira clássica de eternizar momentos e pessoas. Alguns se tornam objeto de visitação, admiração e cenário ideal de selfies — caso do Memorial de Abraham Lincoln, em Washington. Outros despertam polêmicas, como o Vale dos Caídos, basílica erguida pelo generalíssimo Francisco Franco nos arredores de Madri e de onde seus restos mortais foram removidos há três anos para desestimular romarias de saudosistas da ditadura. Embora esse tipo de arquitetura se espraie por todos os cantos do planeta, ele é especialmente apreciado pelos governos totalitários e mais ainda por aqueles que pendem para a extrema direita — nesse caso, a obra tem sempre o intuito de exibir ecos de um passado glorioso. É nesse contexto que se encaixa o projeto do italiano Matteo Salvini, ministro da Infraestrutura do governo da ultranacionalista Giorgia Meloni, de construir uma ponte ligando a ilha da Sicília ao continente, plano mirabolante que já foi condenado em várias ocasiões.
Com 5 quilômetros de extensão, a “maior ponte pênsil do mundo” passaria sobre o Estreito de Messina, desembocando na Calábria — um percurso hoje coberto por um serviço ininterrupto de ferryboats. A construção, avaliada em mais de 2 bilhões de dólares, remete à única via de ligação entre os dois pontos registrada em textos históricos: uma rota improvisada sobre barcos e barris para a passagem de 140 elefantes capturados pelos romanos durante as Guerras Púnicas. O feito monumental inspirou o ditador fascista Benito Mussolini e outros governantes a encomendar projetos e criar comissões para viabilizar a ponte, mas tudo foi engavetado quando um estudo de 2021 concluiu que ali se situa uma das áreas de maior risco de terremotos da Europa. Agora, Salvini volta à carga. “Milhões de euros já foram gastos sem que se chegasse a lugar algum. Finalmente vamos passar das palavras aos atos”, afirma.
Na mesma linha, o extremista Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria desde 2010, promove uma reforma completa do 1º andar do Parlamento em Budapeste com o propósito de restaurar a ambientação do passado e desfazer todo e qualquer traço típico da era comunista. “As reformas não seguem a orientação de arquitetos, e sim o gosto de Orbán e seu sonho político de apagar o período entre 1944 e 1989”, diz a arquiteta húngara Zsofia Csomay. Nos tempos modernos, tanto Adolf Hitler quanto Mussolini planejaram monumentos de glorificação do passado como forma de eternizar o próprio papel na história. “Os nazistas e fascistas tinham a Antiguidade como ponto de referência. Por isso construíram tantos templos com colunas, venerando os tempos em que as coisas eram como deveriam ser. O que é pura invenção, claro, verdades repaginadas milhares de anos depois”, diz Vincent Hiribarren, professor de história da King’s College de Londres.
O esforço de criação de uma identidade nacional está por trás dos edifícios espetaculares erguidos nas areias dos emirados e dos reinos da Península Arábica, países criados há pouco tempo onde a população de trabalhadores imigrantes é quase dez vezes maior do que a local. Tanto o Museu do Futuro — fantástica edificação em forma de anel onde as janelas formam poemas na caligrafia árabe — quanto o Louvre de Abu Dhabi e as Torres Petronas, na Malásia, são reflexo da ambição de seus governantes de se valorizar em obras modernas, mas com o olhar para o passado. “São exemplos do que chamamos de arquitetura totalitária, que não se limita aos regimes assim qualificados — é adotada por qualquer governante que impõe sua vontade na definição dos símbolos de sua gestão”, explica Marcello Cappucci, professor de arquitetura e poder na PUC-Rio.
Em poucos lugares o passado de glória é usado para valorizar governos tanto quanto no Egito, onde os faraós da Antiguidade seguem presentes nos discursos e nas construções monumentais. Exemplo mais recente é o Grande Museu Egípcio, que o presidente Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, no cargo desde 2014, planeja inaugurar neste ano com uma coleção que fará dele o maior museu arqueológico do mundo, instalado na frente das pirâmides. Antes mesmo de a obra ficar pronta, Al-Sisi transformou em desfile noturno, à luz de tochas, o transporte de 22 múmias do antigo para o novo edifício. Nada como uma parada de sarcófagos para irradiar brilho sobre um regime marcado pela violência e pela desigualdade.
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822