Governo de Ortega prende mais um padre e amplia cerco à Igreja Católica
Os religiosos fazem o que ele não admite: denunciar os abusos cometidos no país
Bem que ele tenta, mas não está fácil para o presidente Lula achar argumentos para apoiar os contemporâneos da velha guarda da esquerda na América Latina que fizeram uma opção preferencial pelo regime ditatorial. É lista que começa com Nicolás Maduro, da Venezuela, passa pelos herdeiros de Fidel Castro, em Cuba, e desemboca na maior desilusão de todas para os militantes de meio século atrás: Daniel Ortega, da Nicarágua, o comandante da Frente Sandinista que, após anos de luta, derrubou do governo o corrupto e truculento clã Somoza. Ortega chegou ao topo e pôs-se a fazer tudo o que condenava. Há dezesseis anos e quatro mandatos consecutivos no poder, o ditador se tornou mestre em sufocar todo e qualquer tipo de oposição, à custa de intimidação, prisão, tortura e fuzilamento. Neste ano, o alvo principal tem sido clérigos da Igreja Católica que denunciam abusos — o padre Fernando Zarma é a mais recente vítima, detido em meados do mês sem acusação formal, ao sair de uma missa, e com paradeiro até agora desconhecido.
O religioso mais proeminente nos presídios nicaraguenses é o bispo Rolando Álvarez, condenado a 26 anos de prisão em fevereiro por traição, atentado contra a segurança nacional e disseminação de notícias falsas. Ele se recusou a deixar o país junto com outros 222 prisioneiros políticos enviados para os Estados Unidos e, neste mês, de novo rejeitou a proposta de ser despachado para Roma. O governo abriu uma vasta investigação sobre lavagem de dinheiro pela Igreja, que resultou em multas e contas bancárias bloqueadas. Os atritos se intensificaram em 2018, quando a cúpula católica rejeitou o pedido de Ortega de suporte para controlar uma revolta estudantil que deixou mais de 300 mortos. De lá para cá, dezenas de religiosos foram presos. Só em 2023, sete padres foram expulsos, outros seis fugiram temendo represálias e mais três que viajaram não puderam retornar.
Na Nicarágua sandinista, cinco das seis empresas de mídia estão nas mãos de amigos e familiares do casal Ortega. Consequência direta da repressão, o êxodo cresce — os nicaraguenses foram a quarta nacionalidade que mais pediu asilo em outros países no ano passado, à frente de venezuelanos, afegãos e cubanos. “A impopularidade e ilegitimidade de Daniel Ortega são inquestionáveis e a situação está ficando insustentável até para a pequena parcela que ainda simpatiza com os sandinistas”, diz o cientista político Manuel Orozco, pesquisador da universidade americana Georgetown. O ditador se sustenta com um núcleo duro de apoio e com controle quase total da máquina: oito dos nove filhos lideram pastas do governo.
Antes da eleição do ano passado, Ortega prendeu, um por um, todos os candidatos rivais e 47 presos políticos foram condenados em julgamentos sumários. No país sob censura férrea, um simples tuíte que desagrade ao governo pode resultar em até oito anos de prisão, como ressalta uma declaração de repúdio do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, endossada por cinquenta países em março. O Brasil de Lula — a quem o papa Francisco pediu que interceda pelos religiosos nicaraguenses — seguiu em cima do muro até o início de julho, quando apoiou uma resolução da OEA que pede democracia na Nicarágua. Pelo andar do trator Ortega, isso está longe de acontecer.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851