‘Golpistas mostram como o mundo funciona’, diz autor de ‘A Grande Aposta’
A VEJA, jornalista Michael Lewis deu detalhes sobre novo livro sobre Sam Bankman-Fried e projetos audiovisuais
Ninguém teve acesso a Sam Bankman-Fried (SBF, como é chamado), fundador da falida bolsa de criptomoedas FTX, como Michael Lewis. O jornalista consagrado, com passagens pelo The New York Times e The New Yorker, passou longos meses com Sam — por vezes, estiveram juntos por mais tempo do que o investidor americano viu seus pais, Joseph e Barbara. A companhia permitiu que Lewis pudesse testemunhar de perto o que se passava por trás da mente daquele que tinha o potencial de se tornar o primeiro trilionário do planeta, fortuna que atraiu celebridades e políticos para o seu lado — ele, ao contrário dos que estavam ao seu redor, pouco se interessava com o status garantido pelo dinheiro.
Na verdade, Lewis descobriu que Sam não era atraído por temas que permeiam o imaginário dos resto dos mortais: achava moda perda de tempo, não se interessava por arte, não era fascinado por ideais políticos e tinha certeza que Deus não existia. Mas ele era atraído por enigmas, e era muito bom neles. O talento o garantiu um emprego na Jane Street Capital, empresa de trading em Wall Street, rendendo-a bilhões de dólares.
Em 2017, decidiu andar com as próprias pernas e fundou a Alameda Research, voltada para o comércio de criptomoedas. Dois anos depois, criou a bolsa de cripto FTX, que entrou com processo de falência em novembro de 2022 por irregularidades. Sam não saiu ileso, claro, e foi acusado de fraude e lavagem de dinheiro. Em março deste ano, foi condenado a 25 anos de prisão — duas décadas a mais do que o tempo pedido por sua equipe jurídica. Os advogados entraram com apelo, mas a deliberação pode demorar anos para ser emitida.
Mais de um ano após a FTX cair em desgraça, o livro que relata a vida de altos e baixos de Sam, escrito por Lewis, chega ao Brasil através da editora HarperCollins. Sem limites: Ascensão e queda de Sam Bankman-Fried (R$ 64,90), com tradução de Beatriz Medina, chega às livrarias em 15 de maio. Mas o acesso privilegiado a SBF, ao seus ex-funcionários e à sua família não foi capaz de blindar sua obra das críticas — segundo a avaliação do jornal Los Angeles Times, esta carece de “uma dose saudável de ceticismo”.
A VEJA, Lewis fala sobre os transtornos que podem assolar a mente de Sam, opina sobre o veredito de mantê-lo atrás das grades por 25 anos e condena os que desdenham do livro, lançado nos EUA em outubro do ano passado. “Eu sei muito mais do que eles, passei muito mais tempo nessa história”, justifica. “Estive lá no início, meio e fim”.
Aos leitores que ficaram fascinados pela vida de Bankman-Fried, confirma as boas notícias: os direitos autorais foram comprados pela Apple TV, mas a adaptação para as telas ainda não tem data definida. Caso siga os passos de A Grande Aposta, filme baseado em sua obra “A Jogada do Século”, e que concorreu a cinco estatuetas do Oscar, o sucesso é (quase) garantido.
No livro, você cita celebridades, como Gisele Bündchen, Tom Brady, Anna Wintour, e a relação delas com os investimentos de Sam Bankman-Fried. Elas ficaram incomodadas com a menção?
Eu tenho certeza que ficaram incomodados [riu]. Só que eles estavam mais desconfortáveis que com o contato com Sam. Não posso falar por todos, mas interagi com alguns deles e acho que se sentiram enganados, iludidos pelo Sam. E isso [a relação com SBF] os causou tantos problemas, existem processos judiciais em jogo. Ao mesmo tempo, é compreensível. Quando Sam estava no topo do mundo, todos queriam estar com ele. Não era apenas que eles queriam o seu dinheiro, eles queriam estar perto dele.
No entanto, não foram só celebridades: os mais importantes bancários não só deram ao Sam dinheiro, mas queriam fazer os mesmos tipos de investimentos. Políticos também, desde Mitch McConnell [líder da minoria no Senado dos EUA] até a Casa Branca. Sam tinha a habilidade de se comunicar com todos eles. Agora, dizem que não tiveram nada a ver com Sam. Mas isso é falso, foi extraordinário. De qualquer forma, ninguém entrou em contato comigo para reclamar.
Você mostra que a campanha de Joe Biden à Casa Branca foi financiada por Sam, seu segundo maior doador, em 2020. Acha que, por essa informação ter ido à luz do dia, os políticos ficarão mais preocupados com seus doadores nas próximas eleições?
É importante ressaltar que só uma parte pequena do dinheiro da FTX aplicado na política está relacionado à criptomoeda. Na verdade, as maiores preocupações deles eram com Donald Trump e com a prevenção da pandemia de Covid-19. Ele financiou Mitch McConnell e a campanha de Biden, sem pensar em medidas pró-cripto. Era um posicionamento anti-Trump. Agora, os trumpistas usam a doação para Biden como argumento de que ele estava envolvido com um criminoso. Pega mal, mas não proporcionou mudanças. Recentemente, vi um evento de arrecadação de fundos para a campanha de Biden e ninguém estava prestando atenção para de onde o dinheiro estava vindo. Então, a resposta é “não”. Eles precisam de tanto dinheiro e é tão difícil de consegui-lo que apenas cruzam os dedos para que não estejam envolvidos em algo comprometedor.
E essa falta de informação sobre doações é um dos problemas da política?
É um problema gigantesco. Primeiro, as leis mudaram nos Estados Unidos. Hoje, é possível que uma pessoa muito rica dê quantias ilimitadas de dinheiro para um candidato sem que ninguém realmente saiba quem fez a doação. Não é um financiamento direto. Por exemplo, um ricaço pode doar para uma organização, sem informar onde aplicar a quantia, mas sabendo que o dinheiro tem potencial de ser enviado à campanha de determinado político. Isso cria uma enorme distorção, na qual os ricos têm uma influência maluca nos resultados. E esse problema é antigo, o dinheiro sempre vence. Não sei nem se uma reforma do sistema é possível. Precisamos torcer para que a democracia sobreviva a essas condições.
O trabalho de Sam na Jane Street Capital tinha como objetivo melhorar as máquinas para que os funcionários apenas atuassem como moderadores. Como avalia a substituição de pessoas por máquinas?
É do interesse das empresas colocar informações no mercado de maneira rápida. No lugar de se mover na velocidade humana, passa a se mover na velocidade das máquinas. Esse lado é bom. Também reduz os custos para as pessoas que querem comprar ações. Mas há efeitos ruins, escrevi um livro sobre isso, chamado Flash Boys. O jeito como usamos as máquinas hoje beneficiam negócios como a Jane Street. Eles têm acesso mais rápido que todo o resto, em milissegundos, e isso faz diferença. Os ricos ganham vantagem em relação os traders da classe média. É como se transferisse a riqueza da classe média para a alta, agrava a desigualdade. Além de que as pessoas em Wall Street sempre fizeram coisas ruins, mas é mais difícil fazer face a face. As máquinas não pensam nas consequências humanas. Acaba por desmoralizar e desumanizar mais o mercado.
Em diferentes partes do livro, o senhor afirma que Sam é incapaz de sentir tristeza, felicidade e até mesmo empatia. Enxerga isso como um sinal de sociopatia?
É claramente neurológico, e é tão impressionante. Eu fui visitá-lo na prisão há umas semanas e ele não mudou. Não está triste, deprimido ou aborrecido, é como se nada tivesse acontecido. Eu pensei nisso [sobre sociopatia] quando estava escrevendo sobre Sam no livro. Sabe aquelas imagens de ilusão de ótica que, se você se mexe, muda? De um lado, mostra uma bruxa; do outro, uma mulher bonita. Esse aspecto neurológico do Sam é assim: horrível de uma perspectiva, bonito de outra. Existe uma falta de empatia, e isso é perigoso porque ele é capaz de fazer coisas mais arriscadas. Só que ele tinha conhecimento disso, de que funcionava como uma máquina. Ele adotou sinceramente o utilitarismo como um guia para o bem. O juiz disse que ele é autista, mas eu não falo isso no livro. Eu quero que o leitor chegue as suas conclusões. Ele nunca foi diagnosticado. Acho que quando entenderem melhor o cérebro, vão pensar “ah, era isso que o SBF tinha”.
O senhor destaca que tanto a Jane Street Capital como os futuros empreendimentos de Sam eram obscuros, sem muitas informações disponíveis. O mercado financeiro é, de certa forma, misterioso, numa lógica de que só o sucesso importa?
Wall Street sempre teve seus comportamentos ruins recompensados. O pensamento é: “o que posso fazer que está dentro da lei?”. Não há muita moral por lá. Mas eles consideram, sim, que há um custo para a reputação. Então, eles fazem um cálculo de risco a níveis individuais, não querem ser processados. O que acontece no trading automático é que é muito mais difícil de policiar os comportamentos porque tudo é feito por máquinas e ninguém entende o que elas estão fazendo. Não há risco para a reputação porque ninguém sabe que a Jane Street fez tradings estranhos. Quando humanos sabem de problemas, há chance de que isso vaze. Não é o caso dos algoritmos. Wall Street nunca foi transparente, mas hoje as finanças são tão complicadas que as pessoas não conseguem enxergar os erros. A complexidade os esconde do escrúpulo.
Há uma passagem que diz: “algumas pessoas nascem criminosas e outras se tornam criminosas. Acho que ele [Sam] se tornou criminoso. Como e por que se tornou criminoso, não sei. Talvez exija uma compreensão sobre esse garoto e seus pais”. O senhor passou horas e horas com Sam. Chegou a um veredito?
Eu passei meses com ele, dois anos no total. Na verdade, ainda passo tempo com ele. Realmente não acho que ele tinha intenções criminosas. Sam não pensava em roubar dinheiro. É um fato de que todos receberão o dinheiro de volta, isso é importante. Isso resume o que penso sobre ele. No entanto, eu acho que ele colocava, sim, as pessoas em risco. Ele é insensível ao risco, à dor e aos sentimentos dos outros. Em 2022, ele colocou as pessoas em risco por uns cinco meses. Até maio daquele ano, se todo mundo pedisse o dinheiro de volta, teria recebido. Depois disso, foram realizados investimentos ruins e houve o crash da cripto, ficou feio. É uma resposta estranha: acho que ele cometeu um crime, mas sem querer. Meu veredito é que ele deveria ir para a prisão, mas não acho que 25 anos é o número certo. Cinco seriam suficientes.
Na sua avaliação, por que as pessoas se interessam tanto por histórias de golpistas, como Sam e o famoso “golpista do Tinder”?
A história do Sam é sem precedentes. Acho que as pessoas se interessam pelo mesmo motivo que eu: te mostra como o mundo funciona. Aqueles que quebram a lei querem se sentir bem com eles mesmos e entendem o mundo de modo particular. Acredito também que as pessoas ficam animadas em ver como outras quebram as regras. Esses golpistas não são normais, e o que não é normal é interessante.
O seu livro A jogada do século deu origem ao filme A grande aposta, estrelado por Steve Carrell, Christian Bale, Brad Pitt e Ryan Gosling. A história de Sam será adaptada para Hollywood?
A história está sendo adaptada para Hollywood. A Apple TV comprou os direitos. Quer dizer, você nunca sabe quanto tempo levará para ser concluído ou se será finalizado. Mas eles pagaram muito dinheiro para isso. Não tenho muitos detalhes no momento, mas realmente acho de que a Apple vai até o final com o filme.
A regulamentação dos negócios de criptomoedas é o caminho para evitar novos golpes no futuro?
A regulamentação e uma inspeção teriam resolvido esse problema. Seria muito simples. Os investigadores veriam facilmente que o dinheiro não estava no lugar certo. Eu fiz, inclusive, essa pergunta a advogados criminais. Podemos dizer que se a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC) tivesse se movido rapidamente, regulado, colocado profissionais para analisar, veriam que havia algo de errado. Vamos voltar para janeiro de 2023, teria sido uma questão simples para eles resolverem. A pergunta seria: qual seria a punição? O que os especialistas me falaram foi que não seria uma grande coisa. Mas, sim, a regulamentação teria resolvido tudo de maneira bem simples e deveria proibir que ter um fundo de Hedge ao lado da sua empresa de trading. Sam teria de escolher entre Alameda Research e FTX.
O senhor foi abertamente criticado por esse livro. Alguns dizem que não é cético o suficiente e acaba por absolver Sam. Como enxerga essas críticas?
Não sei o que falar para os críticos. Eu sei muito mais do que eles, passei muito mais tempo nessa história. Estive lá no início, meio e fim. Pude entrevistar todo mundo e conhecer não só o Sam, mas Caroline Ellison, Nishad Singh, Gary Wang e funcionários da FTX. As pessoas que estão irritadas com o livro não sabem nada, só conhecem o que leem sobre no Twitter [hoje, chamado de X]. Eu não posso escrever o que não é verdade. Escrevi exatamente como foi. Não estou tentando absolvê-lo. O que Sam fez provavelmente merece uma sentença de prisão. Acho que quanto mais você o conhece, com menos raiva e mais triste fica. Muitas pessoas gostam de ficar com raiva, gostam de se limitar a informações que as enfurecem. Prefiro entendê-lo. Então, o que diria aos críticos é: desculpa por não ter escrito um livro tão estúpido quanto o que você teria feito.