Francisco é lembrado como o ‘papa no meio do povo, de coração aberto’ em homilia
Cardeal italiano Giovanni Battista Re conduziu cerimônia fúnebre que descreveu como pontífice acreditava que a Igreja 'é um lar para todos'

Com quase 20 minutos de duração, a homilia fúnebre do cardeal Giovanni Battista Re, neste sábado, 26, relembrou muitos momentos marcantes do pontificado de Francisco – e teve um tom político que, sem dúvidas, irritou vários dos chefes de Estado reunidos na Praça de São Pedro.
Mais de 200 mil pessoas lotaram o Vaticano nesta manhã para dar o último adeus ao papa Francisco na Missa de Réquiem, liderada por Re, presidente do Colégio Cardinalício, em que foi acompanhado por 220 cardeais e 750 bispos e padres perto do altar. Outros mais de 4 mil padres celebraram o ritual na praça. O líder do ritual observou que a participação massiva do público testemunhada nesta semana de luto diz muito sobre o quanto o pontificado dos últimos doze anos “tocou mentes e corações” de muitas pessoas, não apenas dentro da Igreja.

O cardeal Re elogiou o falecido líder da Igreja Católica como um papa do povo, um pastor que soube se comunicar com os “menores entre nós” com um estilo informal e espontâneo. “Foi um papa entre o povo, com o coração aberto a todos”, resumiu.
Ele lembrou que a última imagem que muitas pessoas têm de Francisco é a dele proferindo o que se tornaria sua bênção final no Domingo de Páscoa e cumprimentando-o durante um passeio improvisado de papamóvel na mesma praça onde seu funeral estava sendo celebrado.
“Apesar da sua fragilidade e do sofrimento que o levou ao fim, o papa Francisco escolheu seguir este caminho de entrega até ao último dia da sua vida terrena”, no qual “seguiu os passos do seu Senhor, o Bom Pastor”.
O papa, que se recusou a julgar católicos gays ou divorciados, acreditava que a Igreja “é um lar para todos”, disse Re, concluindo uma homilia fúnebre impactante que desmente sua idade (91 anos). Com seu vocabulário e linguagem característicos, ele sempre procurou lançar luz sobre os problemas do nosso tempo, com a sabedoria do Evangelho, afirmou, encorajando os cristãos a viverem sua fé em meio a esses desafios e contradições, que ele gostava de descrever como uma “mudança de época”.
Francisco era movido pela “convicção de que a Igreja é um lar para todos, um lar com suas portas sempre abertas… uma Igreja capaz de se curvar diante de cada pessoa, independentemente de suas crenças ou condições, e curar suas feridas”, acrescentou.
A homilia foi seguida pela Liturgia Eucarística, na qual o pão e o vinho são consagrados e se tornam o corpo e o sangue de Cristo.
No funeral do papa João Paulo II, em 2005, o sermão foi proferido pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger, que seria eleito 11 dias depois como papa Bento XVI. Re não pode participar do conclave que elegerá o sucessor de Francisco, pois tem 91 anos e não é um candidato papal. Mas observadores do Vaticano acreditam que ele ainda pode ser uma espécie de guia para seus colegas.
Leia íntegra da homilia
Nesta majestosa praça de São Pedro, onde o Papa Francisco celebrou tantas vezes a Eucaristia e presidiu a grandes encontros ao longo destes 12 anos, encontramo-nos reunidos em oração à volta dos seus restos mortais com o coração triste, mas sustentados pelas certezas da fé, que nos garante que a existência humana não termina no túmulo, mas na casa do Pai, numa vida de felicidade que não terá ocaso.
Em nome do Colégio Cardinalício, agradeço de coração a presença de todos vós. Com grande emoção, dirijo uma deferente saudação e um vivo agradecimento aos Chefes de Estado, aos Chefes de Governo e às Delegações oficiais que vieram de muitos países para manifestar afeto, veneração e estima pelo Papa que nos deixou.
A manifestação popular de afeto e adesão, a que assistimos nos últimos dias, após a sua passagem desta terra para a eternidade, mostra-nos quanto o intenso pontificado do Papa Francisco tocou mentes e corações.
Com a nossa oração, queremos agora entregar a alma do nosso amado Pontífice a Deus, para que Ele lhe conceda a felicidade eterna no horizonte luminoso e glorioso do seu imenso amor.
Somos iluminados e guiados pela página do Evangelho, na qual ressoou a voz do próprio Cristo quando interpelou o primeiro dos Apóstolos: «Pedro, tu amas-me mais do que estes?» (cf. Jo 21, 15). E a resposta de Pedro foi pronta e sincera: «Senhor, Tu sabes tudo, Tu bem sabes que Te amo!». E Jesus confiou-lhe a grande missão: «Apascenta as minhas ovelhas» (cf. 17). Esta será constantemente a tarefa de Pedro e dos seus Sucessores, um serviço de amor na senda do Mestre e Senhor Jesus Cristo que «não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos» (Mc 10, 45).
Apesar da sua fragilidade nesta reta final e do seu sofrimento, o Papa Francisco escolheu percorrer este caminho de entrega até ao último dia da sua vida terrena.Seguiu as pegadas do seu Senhor, o bom Pastor, que amou as suas ovelhas até dar a própria vida por elas. E fê-lo com força e serenidade, junto do seu rebanho, a Igreja de Deus, ciente da frase de Jesus citada pelo Apóstolo Paulo: «A felicidade está mais em dar do que em receber» (At 20, 35).
Quando, a 13 de março de 2013, o Cardeal Bergoglio foi eleito pelo Conclave para suceder ao Papa Bento XVI, trazia consigo os anos de vida religiosa na Companhia de Jesus e, sobretudo, vinha enriquecido pela experiência de 21 anos de ministério pastoral na Arquidiocese de Buenos Aires, primeir como Bispo auxiliar, depois como Coadjutor e de seguida, especialmente, como Arcebispo.
A decisão de adotar o nome Francisco manifestou-se logo como a escolha do programa e do estilo em que queria basear o seu Pontificado, procurando inspirar-se no espírito de São Francisco de Assis. Conservou o seu temperamento e a sua forma de orientação pastoral, imprimindo de imediato a marca da sua forte personalidade no governo da Igreja, estabelecendo um contacto direto com cada pessoa e com as populações, desejoso de ser próximo a todos, com uma atenção especial às pessoas em dificuldade, gastando-se sem medida, em particular pelos últimos da terra, os marginalizados.
Foi um Papa no meio do povo, com um coração aberto a todos. Foi também um Papa atento àquilo que de novo estava a surgir na sociedade e àquilo que o Espírito Santo estava a suscitar na Igreja.
Com o vocabulário que lhe era caraterístico e com a sua linguagem rica de imagens e metáforas, procurou sempre iluminar os problemas do nosso tempo com a sabedoria do Evangelho, oferecendo uma resposta à luz da fé e encorajando-nos a viver como cristãos os desafios e as contradições destes anos cheios de mudanças, que ele gostava de descrever como uma “mudança de época”
Tinha uma grande espontaneidade e uma maneira informal de se dirigir a todos, mesmo às pessoas afastadas da Igreja. Dotado de grande calor humano e profundamente sensível aos dramas de hoje, o Papa Francisco partilhou em pleno as angústias, os sofrimentos e as esperanças do nosso tempo da globalização e, com uma mensagem capaz de chegar ao coração das pessoas de forma direta e imediata, dedicou-se a confortar e a encorajar.
O seu carisma de acolhimento e de escuta, associado a um modo de se comportar que é próprio da sensibilidade dos nossos dias, tocou os corações, procurando despertar energias morais e espirituais.
O primado da evangelização foi o guia do seu Pontificado, difundindo, com um claro cunho missionário, a alegria do Evangelho, que foi o título da sua primeira Exortação Apostólica Evangelii gaudium. Uma alegria que enche de confiança e esperança o coração de todos aqueles que se entregam a Deus.
O fio condutor da sua missão foi também a convicção de que a Igreja é uma casa para todos; uma casa com as portas sempre abertas.
Várias vezes utilizou a imagem da Igreja como um “hospital de campanha” depois de uma batalha em que houve muitos feridos; uma Igreja desejosa de cuidar com determinação dos problemas das pessoas e das grandes angústias que dilaceram o mundo contemporâneo; uma Igreja capaz de se inclinar sobre cada homem, independentemente da sua fé ou condição, curando as suas feridas
São inúmeros os seus gestos e exortações a favor dos refugiados e deslocados. Constante foi também a sua insistência em agir a favor dos pobres. É significativo que a primeira viagem do Papa Francisco tenha sido a Lampedusa, ilha símbolo do drama da emigração, com milhares de pessoas afogadas no mar.
Na mesma linha se inscreve a viagem a Lesbos, com o Patriarca Ecuménico e o Arcebispo de Atenas, e a celebração de uma Missa junto da fronteira mexicana com os Estados Unidos, por ocasião da sua viagem ao México.
Das suas 47 cansativas Viagens Apostólicas, ficará para a história, de modo especial, a que fez ao Iraque em 2021, desafiando todos os riscos. Essa difícil Visita Apostólica foi um bálsamo para as feridas do povo iraquiano, que tanto tinha sofrido com a ação desumana do Estado Islâmico.
Foi uma Viagem importante também para o diálogo inter-religioso, outra dimensão relevante do seu trabalho pastoral. Com a Visita Apostólica a quatro nações da Ásia-Oceânia, em 2024, o Papa chegou “à periferia mais periférica do mundo”.
O Papa Francisco sempre deu centralidade ao Evangelho da misericórdia, sublinhando repetidamente que Deus não se cansa de nos perdoar: Ele perdoa sempre, seja qual for a situação de quem pede perdão e regressa ao bom caminho.
Ele quis o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, destacando que a misericórdia é “o coração do Evangelho”. Misericórdia e alegria do Evangelho são duas palavras-chave do Papa Francisco.
Em contraste com o que ele designou por “cultura do descarte”, falou da cultura do encontro e da solidariedade. O tema da fraternidade atravessou todo o seu pontificado com tons vibrantes.
Na sua Carta Encíclica Fratelli tutti, pretendeu reanimar a aspiração mundial à fraternidade, porque todos somos filhos do mesmo Pai que está nos céus. Com força, recordou-nos muitas vezes que todos pertencemos à mesma família humana.
Em 2019, durante a Viagem aos Emirados Árabes Unidos, o Papa Francisco assinou um documento sobre “a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum”, evocando a comum paternidade de Deus.
Dirigindo-se a homens e mulheres de todo o mundo, na sua Carta Encíclica Laudato si’, chamou a atenção para os deveres e a corresponsabilidade em relação à casa comum. “Ninguém se salva sozinho”.
Perante o eclodir de tantas guerras nos últimos anos, com horrores desumanos e inúmeras mortes e destruições, o Papa Francisco levantou incessantemente a sua voz implorando a paz e convidando à sensatez, a uma negociação honesta para encontrar soluções possíveis, porque a guerra – dizia ele – é apenas morte de pessoas e destruição de casas, hospitais e escolas. A guerra deixa sempre o mundo pior do que estava: é sempre uma derrota dolorosa e trágica para todos.
“Construir pontes e não muros” é uma exortação que ele repetiu muitas vezes, e o serviço da fé como Sucessor do Apóstolo Pedro esteve sempre unido ao serviço do homem em todas as suas dimensões
Em união espiritual com toda a comunidade cristã, estamos aqui em grande número a rezar pelo Papa Francisco, para que Deus o acolha na imensidão do seu amor.
O Papa Francisco costumava concluir os seus discursos e encontros dizendo: “Não vos esqueçais de rezar por mim”. Querido Papa Francisco, agora pedimos-Vos que rezeis por nós e que, do céu, abençoeis a Igreja, abençoeis Roma, abençoeis o mundo inteiro, como fizestes no domingo passado, do balcão central desta Basílica, num último abraço a todo o povo de Deus, mas também, idealmente, à humanidade que procura a verdade de coração sincero e segura bem alto a chama da esperança”.