EUA: Esquenta a corrida pela vaga republicana ao páreo presidencial
A batalha está a toda, com o ainda favorito Trump tendo de duelar com DeSantis, o governador da Flórida
No último fim de semana, quem chegava à Conferência de Ação Política Conservadora (Cpac, na sigla em inglês), em Maryland, nos Estados Unidos, não tinha dúvidas de quem seria a estrela-mor do evento que, a cada ano, reúne a hoje predominante banda à direita do Partido Republicano e outros expoentes de mesmo matiz. Santinhos, camisetas e até os biscoitos vendidos na lanchonete estampavam o onipresente rosto do ex-presidente Donald Trump. Espécie de meca do ascendente conservadorismo americano, o atual encontro serviu como plataforma para divulgar a candidatura de Trump às eleições presidenciais de 2024 — corrida que, a cinco meses do início das primárias e a pouco mais de um ano do pleito, já começou a toda entre os republicanos que se digladiam pela candidatura à Casa Branca.
Um traço que une os postulantes à vaga é justamente sua afinidade com o receituário trumpista, de cunho antiglobalista e ultraconservador nos costumes, atirando sempre que possível em temas enaltecidos pela cultura woke, que, segundo eles, em nome de excessos politicamente corretos estaria deturpando o próprio espírito americano. Nessa linha de pensamento se enquadram dois republicanos já inscritos no páreo — Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul e ex-embaixadora dos Estados na ONU na era Trump, e o jovem empresário do ramo da biotecnologia Vivek Ramaswamy.
O maior desafiante ao até agora favorito ex-presidente, porém, ainda está para oficializar seu ingresso na disputa, previsto para maio: Ron DeSantis, governador da Flórida que, entre outras iniciativas, proibiu professores de cutucar discussões sobre diversidade de gênero, política batizada por adversários como Don’t say gay (não pronuncie a palavra gay). Ele ainda empreende uma campanha anti-Disney com o objetivo de tosar privilégios fiscais de uma empresa que “ameaça a família americana por seu progressismo”. Em frenéticas costuras que se desenrolam nos bastidores, Mike Pence, o ex-vice-presidente, e Mike Pompeo, o ex-secretário de Estado, também tentam se viabilizar, mas, distantes do trumpismo, largam em franca desvantagem.
Derrotado por Joe Biden em 2020, numa disputa que sustenta ter sido fraudada, Trump continua a ser o mais popular dos líderes à direita. Em recente pesquisa conduzida pelo instituto YouGov, 37% dos republicanos apoiam a candidatura do ex-presidente, mas isso não significa, nem de longe, que ele terá vida fácil. Pois na mesma aferição DeSantis, dono de diplomas das universidades de Harvard e Yale que lhe envernizam o currículo, desponta como o preferido de 35% do eleitorado, o que configura empate técnico. Trump, que está enroscado em processos até o último fio do topete, garante que nem um eventual indiciamento da Justiça que tanto fuzila o fará desistir e segue com o habitual tom messiânico, desancando “aberrações” dentro do próprio partido. “Em 2016, eu lhes disse: sou sua voz. Hoje, vou acrescentar: sou o seu guerreiro”, afirmou no que acabou por virar um comício em Maryland, onde o ex-presidente Jair Bolsonaro aplaudia na plateia. “Trump pode ser ainda o principal nome à indicação republicana, mas não é mais o líder absoluto da sigla”, avalia o cientista político Robert Oldendick, da Universidade da Carolina do Sul.
Seus oponentes tentam se equilibrar em uma delicada equação — defendem a mesma cartilha conservadora, cada qual com suas tintas, mas sabem bem que precisam se descolar de Trump. Por isso, fogem de confrontos, mas atiram farpas para todos os lados. Ex-aliada, Nikki Haley repisa a ideia de que o país deve renovar suas lideranças e agita a bandeira de que políticos acima dos 75 anos necessitam de testes cognitivos — Trump terá 78 nas eleições. Depois de vencer de lavada a disputa pela reeleição ao governo da Flórida, DeSantis, apadrinhado do ex-presidente em sua estreia, em 2018, também se põe estrategicamente afastado dele. Agora, está sacando da manga um trunfo — seu recém-lançado livro The Courage to Be Free (A Coragem de Ser Livre), no qual apresenta ponto a ponto as medidas que adotou na Flórida e quer propagandear país afora com o objetivo de ganhar impulso para o duelo presidencial. O polêmico governador se tornou mais conhecido sob os holofotes dos tempos de pandemia, quando se opôs ao isolamento social e manteve as engrenagens da economia funcionando, ainda que seu estado tenha contabilizado mais vítimas do vírus do que outros.
O descontentamento com os efeitos da globalização e o avanço das desigualdades abriram espaço para toda sorte de populismo nos Estados Unidos, descortinando uma avenida para a direita representada pelo trumpismo. O extremismo, de fato, fincou raízes mais fundas no lado republicano do que no democrata, o que se explica pela natureza da composição de cada um. “Os democratas são uma aliança multiétnica, cuja diversidade e compromisso com objetivos políticos favorecem o pragmatismo”, afirma Jim Guth, da Universidade Furman. “Já os republicanos são mais homogêneos tanto racialmente quanto ideologicamente, o que os torna mais unidos e potencialmente mais reacionários”, diz o professor. Não foi sempre assim na agremiação que surgiu em 1854, onde alas variadas debatiam entre si sem se aferrar a verdades cristalizadas, mas o processo que desaguou no que se vê hoje já vinha tomando corpo desde a gestão de Ronald Reagan, nos anos 1980. Trump só fez aprofundar a visão conservadora da história e instaurou o vale-tudo, algo de que a tão bem estabelecida democracia americana definitivamente não precisa.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832