“Estar vivo é um milagre”, diz haitiano que sobreviveu a terremoto
Jac-Ssone Alerte, 35 anos, relembra os momentos de terror que viveu enquanto a terra tremia sob seus pés, em 14 de agosto
Lembro perfeitamente daquele dia com tudo o que ele contém de medo e alívio. Sempre acordo às 4 da manhã para fazer as coisas com calma. Engato logo cedo uma reunião com a equipe do Brasil da Village Marie, ONG que criei para ajudar minha cidade natal, Duchity, a oeste da capital, Porto Príncipe. Naquele dia, por acaso, desmarquei o compromisso. Aproveitei o sol para trabalhar no plantio de árvores na vila, quando de repente senti o solo tremer assustadoramente. Na hora, você não consegue entender nada. Tudo à minha volta começou a virar poeira, literalmente. Casas v desapareceram na minha frente. Uma catástrofe sem tamanho.
Pensei na morte, claro. Corri para procurar meu pai, achando que ele poderia estar soterrado nos escombros de casa. Por sorte, não foi atingido, mas nosso lar não se salvou. Foi totalmente destruído. Não sobrou nada, incluindo o espaço onde geralmente trabalho, aquele em que aconteceria a reunião daquela manhã. Logo a ficha caiu: eu poderia ter morrido se tivesse seguido minha rotina habitual. Vi gente chorando, desesperada. Vi pessoas morrendo.
O pesadelo não termina com o tremor em si. O mais impressionante desta experiência são os abalos secundários que sucedem à grande tremedeira. Todos ficam apavorados, em estado de alerta. Um passarinho canta ao seu lado e você leva um susto desproporcional. Criei um projeto para ajudar minha cidade e, naquele dia, percebi que eu também precisaria de socorro para sobreviver. Sete pessoas da vila ainda estão desaparecidas e seis faleceram. Minha tia morreu depois que uma pedra caiu sobre sua cabeça e tenho amigos gravemente feridos. Estão todos traumatizados. Além dos danos físicos, você fica sem chão, literalmente. Vê tudo o que conquistou evaporar: casa, documentos, referências. Eu não sei onde está meu diploma da faculdade, que suei tanto para conseguir. Parte de minha identidade foi embora com o terremoto.
Estudei no Brasil há mais de dez anos com um propósito claro: fazer algo para reconstruir meu país após o sismo de 2010. Não por coincidência, cursei engenharia civil na UFRJ, uma das universidades mais prestigiadas. Meu objetivo era aprender a desenvolver soluções inovadoras para as habitações no Haiti, uma nação pobre e carente de tudo. No meio acadêmico, consegui criar junto com meus professores uma casa popular resistente a catástrofes às quais meu país é tão vulnerável.
O resultado das pesquisas foi uma casa quadrada, de geometria simples, que custa 30 000 reais para ser erguida – não é nem muito leve, para não ser levada pelo vento soprado pelos furacões, nem pesada demais, para evitar estragos em caso de desabamento. Quango voltei para o Haiti, coloquei o projeto em prática através de minha ONG e agora colhemos os frutos: na cidade onde moro, as estruturas que havíamos construído foram das poucas que se mantiveram firmes. Tenho muito orgulho de ter aplicado e disseminado conhecimento acadêmico valioso à realidade dos haitianos.
É difícil manter a esperança acesa no meio de mais uma tragédia. Quero diminuir a dor dos outros, propagar algum otimismo. A cada 100 pessoas, 90 estão atualmente esperando um lugar para morar. O Haiti hoje parece um inferno na Terra. Não há tempo sequer para viver o luto, porque as questões práticas não dão trégua – precisam ser resolvidas, e já. O poder público não é atuante, daí a urgência de nos unirmos como comunidade, priorizando o básico: alimentação e abrigos provisórios feitos com lona. Eu poderia voltar para o Brasil, ter uma vida diferente, mas não quero deixar meus vizinhos para trás, na miséria. Nossos problemas têm solução. Elas não são fáceis, mas existem. Sou um sonhador e acredito, de coração, que uma realidade muito melhor nos aguarda.