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Estados Unidos: uma eleição movida a ódio

O FBI investiga um segundo atentado à vida de Donald Trump — mais um sinal de que a violência é marca de uma acirrada disputa

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 21 set 2024, 08h00

A atual corrida à Casa Branca vem sendo permeada por eventos extraordinários em série — o atentado contra o candidato republicano Donald Trump, em que ele levou uma bala de raspão na orelha, ainda povoava as manchetes quando o atual ocupante do Salão Oval, Joe Biden, anunciou que havia decidido deixar o páreo, e sua vice, Kamala Harris, entrou na disputa a apenas 105 dias do pleito. Eis que, no domingo 15, mais um episódio se somou ao rol de fatos inesperados da eleição americana: pela segunda vez em dois meses, Trump esteve na mira de um homem armado, caso investigado pelo FBI como tentativa de assassinato. O ex-presidente praticava golfe em sua propriedade na Flórida no momento em que agentes avistaram o cano de um fuzil em meio aos arbustos e abriram fogo contra o sujeito que empunhava a arma. Foi tudo rápido e ninguém saiu ferido, mas serviu para fazer subir a já elevada temperatura nos Estados Unidos, onde a apertada contenda vem sendo embalada por discursos cheios de disparos de parte a parte, mas especialmente virulento no campo de Trump, que alimenta o caldeirão das fake news e da polarização num país rachado. “Vivemos tempos perigosos”, disse um porta-voz do Serviço Secreto, após deter o autor do atentado.

Não está ainda claro o que teria motivado Ryan Routh, 58 anos, a passar doze horas à espreita, munido de uma AK-47 e uma câmera fotográfica tipo GoPro. Assim que foi capturado em rota de fuga, sem ter disparado nenhum tiro, postagens antigas mostraram que ele já depositara seu voto em Trump, em 2016 e 2020, e andava às voltas com um mirabolante plano para pôr fim à guerra na Ucrânia que incluía o recrutamento de soldados afegãos, tudo detalhado em um livro que publicou nas redes ao viajar a Kiev como voluntário para lutar contra a Rússia. Uma hipótese levantada como motivação para o atentado seria o desprezo de Trump pela causa ucraniana. A apuração segue, mas o republicano já insuflou suas falas com aquele heroísmo dos que caem de pé. “Há pessoas neste mundo que farão de tudo para nos impedir. Minha determinação, porém, só ficou mais forte após mais este atentado”, escreveu Trump para seus apoiadores apenas quatro horas após o ocorrido. Detalhe: o texto vinha acrescido de um link para doações.

Na batalha por eleitores indecisos, uma finíssima fatia pela qual Trump e Kamala duelam voto a voto, a aposta dos observadores de plantão é de que o episódio não irá alterar o embate — mesmo com o ataque na Pensilvânia, em 13 de julho, do qual o republicano saiu com a feição ensanguentada, brandindo “lute, lute!”, nada mudou. “Esse discurso serve para energizar sua base, que já está consolidada”, avalia o especialista em relações internacionais Roberto Uebel. A violência na campanha americana, que atingiu nível máximo e inaceitável com a ameaça à vida de um dos candidatos, encontra uma alavanca nas estocadas verbais do próprio Trump, recheadas de inverdades que não raro semeiam o ódio. No debate de 10 de setembro, ele voltou a repisar a sandice de que na cidade de Spring­field, em Ohio, os imigrantes haitianos estavam matando cães e gatos para se alimentar. “Eles comem seus bichinhos de estimação”, afirmou, sem se preocupar com o poder de sua fake news. Desde então, Springfield registrou 33 ameaças de ataques à bomba em escolas e universidades frequentadas pela comunidade haitiana, obrigando o governo local a empreender buscas diárias por explosivos. “A linguagem de Trump inspira pessoas a tomarem ações agressivas, tanto a favor como contra ele”, afirma Uebel.

MENTIRA PERIGOSA - Springfield: haitianos estariam comendo pets, diz Trump
MENTIRA PERIGOSA - Springfield: haitianos estariam comendo pets, diz Trump (Rebecca Noble/AFP)

Do lado democrata do ringue, a tática é desconstruir o republicano, tentando colar à sua imagem a ideia de um candidato que não traz novidade à paisagem política e afronta os pilares da democracia — tudo num clima mais debochado do que raivoso. Nos últimos dias, os trumpistas difundiram vídeos que exibem os oponentes em postura menos austera (“a vontade é dar um soco na cara dele”, desabafou num deles um senador democrata), com o objetivo de mostrar que, também eles, perdem a linha. Não demorou, e o próprio Trump apareceu culpando os democratas pelo episódio do campo de golfe. “Por causa dessa retórica da esquerda comunista, as balas estão voando”, postou o ex-presidente, que já havia dito à Fox News que o “discurso inflamatório” de Kamala e Biden incentivou seu agressor. Logo a metralhadora giratória antidemocrata do bilionário Elon Musk entrou em ação. “E ninguém está tentando assassinar Biden e Kamala”, publicou no X. “As condições são propícias para o aumento da violência retórica e por vias de fato”, analisa o cientista político John Carey, da Universidade Dartmouth.

A história americana é marcada por acirrados períodos de violência política, que tem no acesso facilitado a armas de fogo um trampolim. Quatro presidentes foram assassinados no exercício do mandato (Abraham Lincoln e John F. Kennedy entre eles) e outros quatro, feridos em atentados. Dois aspirantes à Casa Branca também se tornaram alvo de tiros, totalizando dez incidentes do gênero desde 1865. A comparação mais próxima com o caso de Trump é o de Gerald Ford, que, em 1975, sobreviveu a dois ataques em duas semanas. Mas o nível da violência, que cresce sob a moldura de um tecido social esgarçado, faz lembrar mais o ano de 1968, quando Martin Luther King Jr., símbolo da luta contra a segregação racial, e Robert F. Kennedy, em campanha para a Presidência, foram mortos a tiros num intervalo de dois meses. O quadro de hoje tem suas peculiaridades, uma vez que a polarização que cinde o país mudou de natureza — se nos anos de 1960 ela ficava circunscrita à política, agora adentra todos os terrenos. “A afinidade por um ou outro candidato virou questão existencial. A vitória do oponente é vista como um beco sem saída”, ressalta a especialista Karina Calandrin. Em seu relatório anual de análise de riscos para 2024, o Eurasia Group destacou entre os pontos merecedores de atenção o que definiu como “a guerra dos EUA consigo mesmos”. Que prevaleça a paz.

Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911

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