Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

Estados Unidos: coronavírus, desemprego e, agora, conflito racial

A resposta de Trump: mais lenha na fogueira

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h21 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00

Na história dos Estados Unidos, país de superlativos, são até comuns os episódios de convulsão social. Não faltam conflitos raciais explosivos, a economia às vezes despenca de repente e dizima mercados, como aconteceu em 1929, os governantes tiram a nação do prumo e pelo menos duas epidemias — a gripe espanhola, em 1918, e a aids, no início dos anos 1980 — são tristes capítulos. Neste momento, o clima de nervosismo e medo típico das situações de crise novamente toma conta do país, com uma diferença notável: pela primeira vez, é tudo junto agora. A pandemia de Covid-19 já contaminava quase 2 milhões de pessoas, a atividade econômica paralisada contava 35 milhões de desempregados e o governo confrontava cientistas e países aliados sem pesar consequências quando, na última segunda-feira de maio, em uma avenida de Minneapolis, cidade do Centro-­Oeste, um policial branco prensou o joelho por oito minutos e 46 segundos no pescoço de um negro algemado e deitado no asfalto. Na frente de celulares que filmavam a cena, George Floyd, 46 anos, repetiu: “Não consigo respirar” e “Me deixe levantar”. Não deixaram. Ele morreu em seguida.

One week since African-American George Floyd died during a brutal police arrest, sparking a wave of nation-wide protests
DURÃO - Trump, depois de posar em frente a uma igreja: gestos para o eleitorado (Brendan Smialowski/AFP)

A cena chocante abriu as comportas do sempre latente confronto racial nos Estados Unidos. Pela televisão e nas redes sociais, imagens de passeatas pacíficas se misturaram às de quebradeira generalizada, dando a medida da mais contundente onda de manifestações, vandalismo e repressão em território americano desde o turbulento movimento pelos direitos civis, no fim dos anos 1960. De Minneapolis, os protestos pela morte estúpida de Floyd — acusado de tentar pagar um maço de cigarros com uma nota falsa de 20 dólares (veja o quadro na pág. 60) — cresceram em volume e em violência, tomaram as principais cidades do país e chegaram a Paris, Londres, Berlim, ao mundo. “É difícil lembrar uma semana tão avassaladora para a história americana quanto esta que passou”, resume Joseph Siracusa, professor de segurança e diplomacia da RMIT University, de Melbourne.

APTOPIX Minneapolis Police Death Pennsylvania
DEPREDAÇÃO - Manifestantes destroem carro na Filadélfia: ao lado de atos pacíficos, saques e vandalismo (Elizabeth Robertson/The Philadelphia Inquirer/AP/.)

Ignorando o toque de recolher, radicais tacaram fogo em delegacias, carros e lojas de Minneapolis. O quebra-quebra estendeu-se às lojas luxuosas da Quinta Avenida e outros pontos de Nova York, onde Macy’s e Bloomingdale’s tiveram vitrines estilhaçadas e produtos roubados. Com os parques em volta tomados por protestos, a Casa Branca teve todas as luzes apagadas e o presidente Donald Trump foi levado para um bunker subterrâneo. Policiais investiram contra uma manifestação pacífica com bombas de gás e pauladas para que o presidente pudesse caminhar 300 metros até a porta de uma igreja e posar segurando uma Bíblia. A Guarda Nacional foi convocada em 140 cidades.

Continua após a publicidade
US-CRIME-RACISM-ARREST
FAZENDO POSE – Chauvin esmaga o pescoço de Floyd com o joelho: morto por suspeita de usar uma nota falsa (Darnella Frazier/Facebook)

Diante da reação popular, o policial que matou Floyd, Derek Chauvin, foi preso sob acusação de homicídio em segundo grau e os três que o acompanhavam também responderão a inquérito (o que não é a regra). George Floyd mereceu brevíssima atenção por parte de Trump, na forma de um telefonema à família. “Foi tão rápido que eu não consegui dizer uma palavra”, relatou depois o irmão do morto. No mais, o presidente passou a semana acirrando os ânimos com ameaças de “quando os saques começam, os tiros começam”, promessas de acionar as Forças Armadas contra os “atos terroristas” e a proclamação de que “eu sou o presidente da lei e da ordem”. Não é exatamente o que crê um naco da população. Os brancos deram os braços aos negros nas passeatas, a própria polícia aderiu às marchas em alguns pontos — na Flórida, um grupo de agentes se ajoelhou, no gesto típico de protesto dos negros — e as redes sociais estamparam quadrados pretos no lugar de vídeos e fotos. Dentro das casas de bairros mais ricos, contudo, boa parte dos americanos se sentia encurralada e amedrontada diante da tremenda turbulência.

Protest against police killing of George Floyd
REAÇÃO - Policiais brancos se ajoelham como os negros: repúdio à violência (Eva Marie Uzcategui/AFP)
Continua após a publicidade

Enquanto as ruas pegavam fogo, a pandemia de Covid-19, que já matou mais de 100 000 no país, continuou se espalhando. Os Estados Unidos, como outras partes do mundo, estão começando a se mexer para voltar à normalidade possível (veja reportagem na pág. 64), mas em muitos locais esse movimento ocorre de forma irresponsável, com o beneplácito de um presidente assombrado pelo efeito eleitoral da hecatombe econômica e empurrado pela desatinada convicção de que quarentena é exagero.

ASSINE VEJA

Os riscos da escalada de tensão política para a democracia
Os riscos da escalada de tensão política para a democracia Leia nesta edição: como a crise fragiliza as instituições, os exemplos dos países que começam a sair do isolamento e a batalha judicial da família Weintraub ()
Clique e Assine

Assoberbado de problemas internos, Donald Trump tem tratado os aliados internacionais com desinteresse, na melhor das hipóteses, e puro desdém, na pior. Sem consultar ninguém, removeu os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde, o centro das medidas de amplo alcance relativas à pandemia. Sem apoios decisivos, insiste em responsabilizar a China — com quem trava uma guerra surda pela hegemonia mundial — pela disseminação do novo coronavírus e exigir reparação. Contava com o trunfo da reunião de cúpula do G7, agendada para 11 e 12 de junho em Washing­ton, para exaltar a normalidade, mas Angela Merkel, chanceler da Alemanha, avisou que não iria, dando a desculpa do novo coronavírus. Emmanuel Macron, da França, e Boris Johnson, do Reino Unido, hesitaram, e a reunião ficou para setembro. Alegando que o grupo está obsoleto (no que não deixa de ter certa razão), Trump cogita chamar os governantes amigos da Índia, Austrália e Coreia do Sul (o Brasil está tentando empurrar a porta), além de Vladimir Putin, da Rússia. “As fraquezas dos Estados Unidos estão à mostra e a sensação é de que o imperador está nu”, diz Julianne Smith, do centro de estudos German Marshall Fund, de Washington.

Continua após a publicidade
APTOPIX America Protests France
SOLIDARIEDADE - Manifestação em Paris: praça lotada apesar da proibição de aglomerações (Michel Euler/AP/.)

Pesquisas recentes instalam o democrata Joe Biden com mais de 10 pontos de vantagem nas intenções de voto para a eleição de novembro. Quanto mais a distância aumenta, mais virulentos ficam os tuítes e as falas presidenciais, um recado direto aos corações e mentes conservadores que elegeram Trump em 2016 e que tiveram a confiança abalada pela crise. A experiência mostra que dureza em momento de tensão racial pode render votos: autor do refrão da “lei e ordem”, Richard Nixon venceu as eleições de 1968, quando o país atravessava o turbilhão do movimento negro. A insistência de Trump em retomar a atividade econômica, seja ou não esta a melhor hora, também é vista como vital para sua reeleição. “O presidente não conseguirá ganhar com base apenas na personalidade. Desta vez, é a economia ou nada”, avalia Charlie Black, conselheiro em todas as campanhas presidenciais republicanas desde 1972. Imune a compromissos e gestos conciliadores, porém, o Trump entrevisto na pandemia e devassado no clamor dos protestos parece mais propenso a destroçar do que a remendar os rasgos do país que dirige. Um sério material para reflexão dos imitadores de Brasília.

Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.