Entre camaradas: como será a visita estratégica de Lula a Cuba
Antes de discursar na ONU e se encontrar com Biden, presidente faz parada para se reaproximar da ilha e agradar à base mais à esquerda do PT
Dando andamento a seu intenso périplo mundo afora neste primeiro ano de governo, ponto central do projeto para tentar firmar uma liderança no cenário internacional, o presidente Lula tem as malas prontas para mais uma rodada de viagens a outros países. Depois de participar da reunião do G20, na Índia, no início do mês, ocasião em que o Brasil assumiu a presidência do grupo, Lula chega a Cuba na sexta-feira 15 e de lá segue para os Estados Unidos, onde vai discursar na abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e deve se encontrar com o presidente americano Joe Biden. A rápida passagem por Havana tem caráter mais simbólico do que prático, ao reiterar os laços que unem há décadas o presidente e a ilha de Fidel Castro e, ao mesmo tempo, servir de afago à ala mais à esquerda do PT. “Queremos fazer da relação entre Brasil e Cuba uma relação exemplar, de grande amizade”, afirmou o assessor para assuntos internacionais, Celso Amorim, em agosto, quando esteve em Havana para costurar a visita.
Em Cuba, Lula vai participar de um encontro do chamado G77, grupo que reúne nações em desenvolvimento, e se reunir com o presidente cubano Miguel Díaz-Canel, com quem já esteve em junho, em Paris. Também está prevista a entrada em vigor de um programa de intercâmbio entre profissionais cubanos e técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Ministério da Saúde. A visita integra a agenda de reversão diplomática e reaproximação do Brasil com Cuba e Venezuela, dois países distanciados de Brasília no governo de Michel Temer e banidos dos contatos do Itamaraty durante a gestão de Jair Bolsonaro.
Lula deve aproveitar para pedir o fim do embargo — ou “bloqueio”, como é chamado lá — americano à ilha, um mecanismo de sanções que já dura seis décadas. “Será mais uma chance de Lula usar a diplomacia para propor alternativas à atual ordem global”, diz Margaret Myers, diretora de Ásia e América Latina do Wilson Center. A viagem acontece em momento crítico para Cuba: reeleito em votação de cartas marcadas em abril, Díaz-Canel encara a pior crise nacional em trinta anos, resultado da queda de receita com o turismo durante a pandemia, das sanções e de uma sequência de erros na política econômica. Há escassez de alimentos e combustíveis e a inflação deve superar os 40% até o fim do ano, uma das mais altas desde a revolução que levou Fidel Castro ao poder em 1959.
A relação de Lula e o PT com Havana é antiga e sólida. O presidente e Fidel se conheceram em 1980, durante as comemorações do primeiro aniversário da vitória da Revolução Sandinista da Nicarágua. Uma década mais tarde, os dois se uniram para criar o Foro de São Paulo, entidade que reúne mais de 120 partidos políticos da América Latina e Caribe. Já presidente, Lula realizou quatro visitas oficiais a Havana, a última delas em 2010, dois anos após Fidel passar o poder — mais ou menos — para o irmão Raúl Castro. Quando o ditador morreu, em 2016, aos 90 anos, Lula prestou extensa homenagem. “Sinto sua morte como a perda de um irmão mais velho”, escreveu em mensagem divulgada pelo site oficial do PT. Uma ou outra crítica ao regime cubano só apareceriam no seu discurso recentemente, na campanha eleitoral para voltar ao Planalto.
A ligação do PT com os irmãos Castro rendeu contratos de negócios e de cooperação social, nenhum deles muito bem-sucedido. O mais vistoso foi a vinda de profissionais da saúde cubanos para participar do programa Mais Médicos, no governo Dilma Rousseff. O projeto chegou a contar com 8 500 contratados, mas sucumbiu perante as críticas ao fato de o governo de Havana embolsar 70% dos 3 000 dólares que cada médico recebia no Brasil. A afinidade resultou também em uma injeção de dinheiro do BNDES para a construção do Porto de Mariel, através de um programa de financiamento de obras no exterior que acabou suspenso devido a denúncias de corrupção e em consequência da alta inadimplência de nações beneficiadas, sobretudo Cuba, Venezuela e Moçambique. Havana tem doze prestações atrasadas, um calote que alcança quase 230 milhões de dólares, Ao final de sua visita preparatória a Cuba, Amorim garantiu que, pelo menos por ora, a reaproximação em curso não vai incluir novos empréstimos. Ufa.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859