Em posição de combate: as duas táticas de Trump após ação do FBI
Alvo de vários inquéritos e de olho na eleição de 2024, o ex-presidente aposta nas cartadas da perseguição política e a da fraude anunciada
Os moradores do exclusivo recanto da Flórida onde se localiza Mar-a-Lago, luxuoso misto de condomínio e clube de golfe que serve de moradia de Donald Trump e família, nunca tinham visto coisa igual. De manhã cedo, agentes do FBI, a polícia federal americana, exibiram mandados de busca e reviraram a mansão de cima a baixo, abrindo cofres e revistando até o closet de Melania (onde devem ter demorado um bom tempo). Saíram carregando pacotes de documentos, supostamente ligados à suspeita de que o ex-presidente tirou da Casa Branca e levou para a sua própria residência diversos papéis sigilosos que deveriam ter sido depositados nos arquivos oficiais.
Trump, como era de esperar, subiu nas tamancas. Aproveitou a deixa para reforçar a lamúria, muito repetida, de que “a perseguição política do presidente Donald J. Trump acontece há anos”. A tecla da caça ao bruxo — ele, no caso — é das mais batidas na pré-campanha não declarada à Presidência em 2024, cruzada movida a emoção, fúria e provocações na medida para levar seus apoiadores ao êxtase. Mais reprisada do que ela, só mesmo a crônica da fraude anunciada: Trump insiste na estapafúrdia tese, sem prova, de que houve falcatruas na votação que elegeu Joe Biden e que elas vão se repetir.
Em comunicado após a batida do FBI, realizada quando a família estava em Nova York, o ex-presidente contou que sua “bela casa” foi “sitiada, invadida e ocupada”. Trumpistas se postaram durante dias no portão de Mar-a-Lago, vociferando contra a operação e prestando seu apoio, enquanto radicais cobriam de ameaças violentas (e, em alguns casos, de tentativas de invasão) as agências da polícia federal. Dois dias depois, Trump teve de depor — e optou por ficar em silêncio — em uma investigação sobre supostas negociatas em sua empresa, um dos inúmeros inquéritos de que é alvo.
Tudo isso, acontecendo em curto espaço de tempo, reforça a aura de vítima de perseguição política, que pode não convencer a maioria, mas azeita a lealdade dos seguidores. Em um comício em Wisconsin, no início do mês, ele já afirmara que as investigações e suspeitas que o têm na mira “só poderiam acontecer comigo”. Nos dias que se seguiram à operação na casa do ex-presidente, ganhou 10 pontos na disputa com o governador da Flórida, Ron DeSantis, pupilo que se voltou contra o mestre, pela indicação do partido à Casa Branca. “Trump acredita que se fazer de vítima é a melhor estratégia para mobilizar sua base”, diz Robert Shapiro, professor de ciência política da Universidade de Stanford. A expressão “caça às bruxas” aparece em 54 tuítes antes de ser banido da plataforma e é fator decisivo na simpatia que 51% dos eleitores republicanos manifestam por ele — porcentual que sobe para 84% quando o cenário é de disputa contra qualquer democrata.
Um efeito da perseguição, no manual do trumpismo, é justamente a manipulação de votos e de apuração na eleição de 2020, uma inverdade que, de tão repetida, virou mantra nas hostes da direita e requisito no currículo dos candidatos a candidatos do Partido Republicano na votação de novembro. Na briga pela disputa de todas as 435 cadeiras da Câmara, 35 do Senado, 39 governos estaduais e uma infinidade de cargos menos importantes, só ganha o cobiçadíssimo aval de Trump quem abaixa a cabeça e levanta a bandeira da fraude que nunca existiu.
Com caixa de 120 milhões de dólares em doações, mais do que o comitê central do partido arrecadou até agora, e comícios que arrastam multidões, Trump cravou 92% dos nomes que endossou nas eleições primárias até agora. Além da perspectiva de um Congresso possivelmente dominado pelo bonde da fraude eleitoral, essa estratégia pode acabar pondo no crucial comando do monitoramento da votação, em 2024, secretários estaduais que jogam no mesmo time — receita para entornar o caldo da apuração e manter a torcida agitada.
Outra tática em andamento no exército trumpista é a de convocar militantes para fiscalizar por conta própria os locais de votação nas eleições primárias, uma espécie de ensaio para novembro. Em julho, um grupo liderado por Seth Keshel, que trabalhou na Inteligência do Exército americano e se autointitula Capitão K, montou guarda em um ponto de coleta de votos antecipados no Arizona, à espreita de pessoas que pudessem estar usando cédulas falsas. Grupos semelhantes já surgiram em pelo menos nove estados (sem achar nenhuma irregularidade, diga-se), acompanhados de ameaças de violência e de identificação e assédio de pessoas que consideram “suspeitas”. Além disso, com os resultados do Censo nas mãos após o atraso da pandemia, os limites distritais que determinam quais políticos representam cada região foram redesenhados e os aliados de Trump nas legislaturas estaduais montaram um mapa mais favorável ao ex-presidente. Em campanha permanente, Trump, venham de onde vierem os ataques, ainda é o cacique incontestável do Partido Republicano.
Na mira da justiça
Não faltam alegações de fraude, abuso sexual e irregularidades financeiras no currículo de Donald Trump, mas ele, até agora, conseguiu arrastar indefinidamente ou engavetar as denúncias e nunca foi a julgamento. Os inquéritos em andamento, no entanto, por serem mais públicos e envolverem questões políticas, podem ter desfechos mais sérios. O secretário da Justiça, Merrick Garland, aprovou pessoalmente o mandado de busca em Mar-a-Lago justamente devido à gravidade dos indícios de que Trump levou documentos presidenciais secretos quando deixou a Casa Branca — alguns, segundo a imprensa americana, relacionados a arsenais nucleares, o que configuraria violação da Lei de Espionagem, punível com até vinte anos de prisão. A manipulação irregular de documentos oficiais impede ainda o responsável de exercer cargos públicos, o que seria um golpe para o pré-candidato à Presidência.
No estado de Nova York, dois inquéritos separados — um civil e um criminal — varrem os registros financeiros das Organizações Trump, acusadas de manobras fiscais. Os filhos de Trump já prestaram depoimento. Ele mesmo, convocado, ficou em silêncio. Mas é nos enroscos da Presidência que os adversários sonham com uma condenação. Uma comissão do Congresso vem conduzindo audiências públicas, algumas transmitidas ao vivo em horário nobre, para determinar se Trump incitou a baderna que resultou na invasão do Capitólio — acusação que pode desembocar em inquérito no Departamento de Justiça.
Uma das surpresas foi o testemunho de Ivanka Trump, filha e assessora do ex-presidente, que procurou manter distância das denúncias infundadas de fraude eleitoral que impulsionam a insurreição. O ex-presidente é investigado ainda por tentativa de manipular as eleições no estado da Geórgia: em um célebre telefonema, ele diz ao republicano Brad Raffensperger, que monitorava a votação e vazou a conversa, para “achar” votos a seu favor. “Há poucos obstáculos aí para um processo e uma sentença”, avalia William Banks, professor de direito da Universidade de Syracuse. A torcida é grande.
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803