‘Efeito Trump’ agrava crise de direitos humanos global, inclusive no Brasil, diz relatório
Anistia Internacional mostra como governo dos EUA intensifica tendências prejudiciais, colocando em risco bilhões de pessoas em todo o planeta

A campanha antidireitos do governo Donald Trump, nos Estados Unidos, está potencializando tendências prejudiciais, destruindo proteções internacionais aos direitos humanos e colocando em risco bilhões de pessoas em todo o planeta. É o que aponta a nova edição do relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, lançado nesta terça-feira, 29, pela ONG Anistia Internacional. O documento analisa a situação em 150 países ao redor do planeta, incluindo o Brasil.
O que a entidade chama de “efeito Trump”, segundo o relatório, agravou os danos já causados por outros líderes mundiais ao longo de 2024. Práticas autoritárias, diz o texto, resultaram na corrosão de décadas de trabalho para garantir os direitos humanos universais. Entre elas estão a repressão contra dissidências políticas, escalada de conflitos armados, falta de esforços para lidar com as mudanças climáticas e uma crescente reação contra os direitos de imigrantes, refugiados, mulheres, e pessoas LGBTQIA+.
Corrosão de valores compartilhados
De acordo com o relatório, o governo Trump vem atacando conceitos antes compartilhados pelo mundo, como de multilateralismo, asilo, igualdade racial e de gênero e saúde global. Por isso, é acusado de desmantelar a ordem mundial baseada em valores e cooperação, uma conquista do pós-Segunda Guerra, pondo no lugar um balcão de negócios onde prevalecerá a lei do mais capaz — um modelo com menos regras e decisões baseadas em barganhas.
De acordo com a Anistia Internacional, o movimento encoraja outros líderes e movimentos antidireitos, citando como exemplo o agravamento das tensões entre Rússia e Ucrânia e a crise humanitária em Gaza em meio à guerra Israel-Hamas.
“Ano após ano, temos alertado sobre os perigos do retrocesso dos direitos humanos. Mas os acontecimentos dos últimos 12 meses, principalmente o genocídio de palestinos em Gaza, revelaram o quão infernal o mundo pode ser quando os Estados mais poderosos abandonam o direito internacional e desconsideram as instituições multilaterais”, diz Agnès Callamard, secretária geral da Anistia Internacional.
Ajuda humanitária, clima e liberdade de expressão
Além disso, a suspensão inicial da ajuda externa dos Estados Unidos também afetou os serviços de saúde e o apoio a crianças separadas à força de suas famílias em campos de refugiados, como na Síria. De acordo com o documento, cortes abruptos interromperam programas que salvam vidas no Iêmen, incluindo tratamento de desnutrição para crianças, mães grávidas e lactantes, abrigos seguros para sobreviventes de violência de gênero e assistência médica para crianças que sofrem de cólera e outras doenças.
O relatório também cita como tema de preocupação que os Estados não tomaram as medidas necessárias para minimizar a crise climática, nem seus impactos sobre os direitos humanos. Queimadas, o aumento do nível do mar, e inundações afetam comunidades em vários locais, onde milhares são obrigados a deixar suas casas e até seus países. A saída de Trump do Acordo de Paris, diz o texto, pode intensificar o problema.
A Anistia Internacional destaca ainda a crescente tendência de ameaça ao direito à liberdade de expressão, citando novas propostas e regulamentações restritivas sobre o direito de protestar na Argentina, na Nicarágua e no Peru. Algumas leis e propostas vão no sentido de controlar, restringir ou fechar ONGs, como ocorre no Paraguai e na Venezuela. Já as manifestações que ganharam as ruas foram reprimidos pelas forças policiais em diversos países da região como Argentina, Cuba, EUA e Venezuela. O “efeito Trump”, também neste caso, pode piorar as coisas, dada sua contenda contra as universidades americanas e a liberdade acadêmica, à luz de protestos pró-Palestina nos campi que são considerados pelo governo como “antissemitas”.
A situação no Brasil
Ainda segundo o documento, no Brasil, a impunidade persistiu ao longo de 2024 em relação às violações dos direitos humanos cometidas por agentes do Estado. O país continua sendo um dos mais perigosos para os defensores do direito à terra, especialmente os relacionados às causas indígena e quilombola, devido a políticas de demarcação de terras.
O relatório também destaca que o desmatamento e as queimadas continuaram diante da resposta insuficiente do governo, enquanto as enchentes no Rio Grande do Sul impactam grupos vulneráveis. Ataques contra comunidades indígenas e quilombolas continuaram frequentes.
Os principais pontos do texto a respeito do Brasil dissertam sobre o uso excessivo da força policial, a perseguição de defensores dos direitos humanos, violência sexual e de gênero e direitos das crianças. Aqui, o “efeito Trump” também deve agravar a situação.
Uso excessivo da força: segundo informações divulgadas em 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2013 a 2023, houve um aumento de 188,9% nos homicídios cometidos pela polícia, com 6.393 mortes em 2023. A maioria das vítimas era de pessoas negras, sendo 82,7% dos casos, e de jovens, 71,7% dos casos.
Defensores dos direitos humanos: a organização Global Witness destacou o Brasil como o segundo país mais perigoso do mundo em 2023 para pessoas que defendem os direitos à terra e território, especialmente as indígenas. Entre 2020 e maio de 2024, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos recebeu 2.332 denúncias de violações contra defensores. O Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos operava em menos da metade (10) dos estados do país. Em 2024, 1.134 casos estavam sob monitoramento, a maioria dos quais envolvendo indígenas e quilombolas. As ameaças partiram principalmente de proprietários de terras, de empresas e de agentes de segurança pública.
Violência sexual e de gênero: dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública destacaram o aumento da violência contra as mulheres. Em 2023, o Brasil registrou 1.467 feminicídios, um aumento de 0,8% em relação ao ano anterior, com 63% das vítimas sendo mulheres negras e 64% dos casos ocorrendo no ambiente domiciliar. Houve 258.941 registros de agressões físicas, um aumento de 9,8%. A violência sexual também aumentou, com 83.988 estupros (alta de 6,5%), dos quais 76% foram contra crianças menores de 13 anos. Apesar desses números, o Mapa Nacional da Violência de Gênero constatou que mais da metade dos casos (61%) não são denunciados. Pessoas LGBTQI+ também enfrentaram ameaças graves, com 7.673 violações de direitos humanos reportadas a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos pelo Disque 100 no ano passado. Em um relatório de 2024, o Grupo Gay da Bahia registrou 257 mortes violentas em 2023, principalmente de jovens negros transgênero.
Direitos das crianças: dados recentes do UNICEF revelaram que, entre 2021 e 2023, pelo menos 15.101 crianças e adolescentes, 82,9% dos quais eram negros, foram vítimas de mortes violentas. Nesse mesmo período, o risco de morte para jovens negros foi 4,4 vezes maior do que para jovens brancos. Em 2023, 900 crianças e adolescentes foram mortos pela polícia. No estado do Rio de Janeiro, a liberdade de circulação dos jovens negros foi ainda mais restringida pela Operação Verão, que teve início em setembro e estava planejada para continuar até março de 2025, mas foi suspensa por decisão judicial. Ela permitia que, em determinadas áreas, os policiais revistassem crianças e adolescentes sem critérios claramente definidos e os encaminhassem para serviços sociais.