Do Brasil à Arábia Saudita, liberdade de imprensa está sob ameaça e risco
Brasil é um dos dez piores países em impunidade a assassinos de jornalistas: foram 41 mortes desde 1992, e 27 investigações não foram concluídas
O mundo vive um momento crítico para a liberdade de imprensa. As investigações na Turquia sobre o desaparecimento, assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi no consulado da Arábia Saudita em Istambul, no início de outubro, causaram horror na comunidade internacional. Até mesmo o americano Donald Trump, que não perde uma oportunidade para agredir verbalmente a imprensa de seu país e para ofender os colegas de Khashoggi, ameaçou Riad com sanções pelo crime.
Segundo a Freedom House, organização não governamental (ONG) americana que monitora anualmente as democracias ao redor do globo, somente 13% da população mundial desfruta de uma mídia realmente livre. Os brasileiros, infelizmente, não estão nesse grupo.
Em 2016, a liberdade de imprensa atingiu seu nível mais baixo em todo o mundo em treze anos, segundo a mesma entidade. Nas ditaduras mais fechadas do planeta, como as da Coreia do Norte, Eritreia, Arábia Saudita, Síria e China, jornalistas são aprisionados, assediados e até assassinados por publicar informações a respeito do governo e de políticos aliados.
Nações com governos democráticos, como México e Brasil, também preocupam a comunidade internacional por conta dos ataques contra repórteres, blogueiros e meios de comunicação, muitas vezes incentivados pelos próprios grupos políticos que dividem o poder.
Um levantamento divulgado recentemente pelo Centro para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), com sede em Nova York, apontou que o Brasil é um dos dez piores países do mundo em termos de impunidade para assassinos de jornalistas.
A ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF) classifica a liberdade de imprensa no país como problemática. De um total de 180 países avaliados pela entidade, o Brasil está atualmente na 102º posição.
Para Gene Policinski, presidente do Freedom Forum Institute, com sede em Washington, nos Estados Unidos, o momento presente é particularmente difícil para a liberdade de imprensa. “Atualmente, governos, partidos políticos e até organizações terroristas têm seus próprios mecanismos para divulgar suas mensagens na internet”, diz Policinski.
“O jornalismo deixou de ser necessário para eles e passou a ser uma ameaça, já que os repórteres estão sempre questionando e desafiando a versão oficial”.
Brasil
Em junho, o radialista Jairo Sousa foi assassinado por dois homens de motocicleta na frente da Rádio Pérola, onde apresentava um programa diário no município de Bragança, no Pará.
Jairo denunciava com frequência casos de corrupção que envolviam políticos da região. Durante doze anos vestiu colete à prova de balas por causa das ameaças recebidas ao longo de sua carreira. O caso já completou quatro meses sem que nenhum suspeito tenha sido apontado pelas investigações policiais.
Segundo o levantamento do CPJ, dezessete casos de assassinato de jornalistas registrados entre setembro de 2008 e agosto de 2018 não resultaram na condenação dos criminosos. Desde 1992, 41 comunicadores foram mortos, e 27 desses crimes permanecem impunes.
Para Daniel Bramatti, presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), o país está dividido em dois panoramas muito distintos: as regiões no interior, onde o Estado é muitas vezes ausente, e os centros urbanos.
Segundo ele, é comum disputas entre forças políticas acabarem em violência em cidades do interior, onde predominam as rádios comunitárias. “Essas pessoas correm muitos riscos, risco de morte inclusive”, diz, referindo-se aos radicalistas.
Mesmo em centros urbanos, porém, os comunicadores têm vivenciado situações de violência nos últimos anos. Casos de insultos verbais e violência física contra jornalistas foram registrados na cobertura das manifestações de 2013 contra a corrupção, durante o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, e no episódio da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Durante a campanha presidencial de 2018, repórteres, blogueiros e produtores de conteúdo também se viram sob ataque, principalmente nas redes sociais. Desde março de 2017, a Abraji registrou trinta casos de assédio on-line vindos de políticos, grupos e empresas de comunicação.
A entidade também assinalou que pelo menos 45 jornalistas foram alvo de exposição indevida, assédio e xingamentos ou calúnia e difamação desde maio de 2018.
Recentemente, a jornalista Patricia Campos Mello, do jornal Folha de S.Paulo, foi alvo de assédio direcionado, de ofensas em massa e de ameaças nas redes sociais e por telefone depois da publicação de sua reportagem sobre o suposto esquema de envio de mensagens contra o PT, por meio do WhatsApp, financiado por empresas que apoiaram a candidatura do presidente eleito Bolsonaro (PSL).
O jornal entrou com representação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), solicitando que a Polícia Federal investigasse as ameaças contra Campos Mello. Diante de tantos ataques, a Abraji criou uma cartilha em português intitulada “Como lidar com assédio contra jornalistas nas redes”, para ajudar repórteres que sejam alvo de violência nas redes.
Segundo Bramatti, parte dessa hostilidade é incentivada pelos próprios políticos brasileiros, que têm adotado tons bastante agressivos contra a imprensa e tentado deslegitimar veículos tradicionais.
Muito se fala sobre as ameaças feitas pelo próprio presidente eleito ao jornalismo livre. Ao ser questionado sobre suas intenções de defender a liberdade da imprensa, durante entrevista ao Jornal Nacional, em 29 de outubro, Bolsonaro adotou uma retórica ríspida. E foi além, ao ameaçar com o corte de verbas publicitárias federais qualquer meio de comunicação que venha a se comportar “maneira indigna”.
O político também foi muito criticado por barrar a entrada, em sua primeira coletiva de imprensa após as eleições, de jornalistas de meios impressos brasileiros e agências internacionais. Segundo o responsável pelo credenciamento do evento, os repórteres não puderam passar da guarita do condomínio de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, “por questões de espaço”.
Segundo a RFS, algumas horas antes da confirmação da eleição do deputado do PSL, seu assessor de imprensa enviou a seguinte mensagem a uma lista de jornalistas encarregados de cobrir as eleições: “Ué, não tava quase empatado? Vocês são o maior engodo do Jornalismo do Brasil!!!! LIXO”.
“Quando um candidato a chefe de governo ataca a mídia em sua campanha eleitoral, me preocupa que, ao chegar no poder, haverá ainda mais tentativas de suprimir potenciais críticos”, afirma Gene Policinski. “A situação do Brasil requer atenção internacional séria”, completa.
Para o presidente do Freedom Forum Institute, é dever da comunidade mundial pressionar o governo brasileiro pelo fim da impunidade e denunciar casos de abuso, principalmente no momento em que a imprensa passa por desafios econômicos e está enfraquecida pela perda de assinantes e de verba de propaganda.
“Neste momento em que a imprensa livre é mais necessária e enfrenta seus maiores desafios, ela também está economicamente mais fraca do que nos últimos anos. Isso também me preocupa”, diz Policinski.
Em comunicado, o diretor do escritório da América Latina da Repórteres sem Fronteiras, Emmanuel Colombié, afirmou que a incitação ao ódio e as declarações agressivas contra a imprensa que marcaram as eleições “são um mau presságio para esta nova era que se inaugura no Brasil”.
“Para preservar a democracia brasileira, Jair Bolsonaro deve agora mostrar-se agregador e valorizar a importância de uma imprensa livre, crítica e independente, em vez de difamá-la”, diz.
Estados Unidos
Nos Estados Unidos, Donald Trump também tem adotado um tom agressivo e ameaçador contra a mídia crítica a seu governo e incentivado ataques de seus apoiadores aos meios de comunicação.
Em outubro, catorze pacotes com explosivos foram enviados a proeminentes políticos do Partido Democrata e críticos do presidente. Três desses envelopes foram endereçados a escritórios da emissora CNN nos Estados Unidos. O autor dessas tentativas de ataques, Cesar Sayoc, era um republicano fanático e permeável às mensagens de ódio à imprensa do presidente.
Jeff Zucker, presidente mundial da rede de televisão americana, responsabilizou Trump pelas tentativas de ataque e criticou a “falta total e completa de compreensão da Casa Branca sobre a gravidade de seus continuados ataques contra a imprensa”.
Meios de comunicação e jornalistas têm sido tratados por Trump como “desonestos”, “falidos”, “fracassados”, “baixos” e “mentirosos” sempre e quando alguma denúncia ou notícia lhe é desfavorável. O presidente coleciona também episódios em que instiga seus eleitores a atacar a mídia.
Em agosto do ano passado, em um evento em Phoenix, no Arizona, o republicano tanto criticou e insultou a mídia que a plateia por pouco não caiu em cima dos repórteres ali presentes. Entre eles estavam jornalistas credenciados na Casa Branca, que viajaram com o presidente de Washington para o Arizona. Na ocasião, Trump chamou os profissionais da imprensa de “doentes” e apontou onde estava a “mídia desonesta, essas pessoas ali em cima junto com as câmeras” para a plateia hipnotizada por seu discurso anti-imprensa.
Já nesta semana, o repórter da CNN Jim Acosta teve sua credencial permanente de acesso à Casa Branca removida pelo Serviço Secreto depois que se envolveu em uma discussão com Trump durante uma coletiva de imprensa. No mesmo pronunciamento, o presidente também se desentendeu com outros jornalistas e ordenou que muitos correspondentes se sentassem, usando um tom extremamente agressivo.
Para Policinski, as atitudes do atual governo americano têm sido muito prejudiciais também para a imprensa de outros países. “Ele encoraja outros líderes, que sentem agora ter mais permissão e liberdade para tomar ações negativas”, afirma.
Segundo o especialista, os Estados Unidos sempre foram vistos internacionalmente como um bom exemplo de respeito à liberdade de expressão. A Primeira Emenda à Constituição do país é clara ao dizer que o Congresso não pode infringir seis direitos fundamentais dos cidadãos, entre eles o de acesso a uma imprensa livre. “Muitas pessoas agora se perguntam onde foi parar esse bom exemplo”, lamenta.
No caso do assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, Trump hesitou em criticar a Arábia Saudita, em um primeiro momento, temendo perder seu principal aliado no Oriente Médio. O governo americano só adotou uma postura dura e cancelou sua participação em uma reunião do setor financeiro em Riad depois de grande pressão internacional e das evidências de que o governo saudita estava envolvido no crime. Além disso, fazia anos que Khashoggi estava exilado nos Estados Unidos.
Arábia Saudita
Em 2 de outubro, o jornalista Jamal Khashoggi foi brutalmente assassinado no consulado da Arábia Saudita em Istambul. Mais de dois meses depois, o governo de Riad ainda não esclareceu as circunstâncias exatas de sua morte, nem informou a localização do corpo.
A situação da liberdade de imprensa na Arábia Saudita é classificada pela RSF como “muito ruim”. De um total de 180 países avaliados pela entidade, o reino está apenas na 169ª posição .
O país agora governado pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman não permite a livre atuação de meios de comunicação, partidos políticos, sindicatos e grupos de direitos humanos independentes. O nível de censura é extremamente alto, e a internet é o único espaço onde as informações podem, por vezes, circular livremente.
Ainda assim, blogueiros e jornalistas que se arriscam a publicar conteúdos críticos ao governo ou considerados imorais ou ofensivos correm o risco de ser perseguidos e presos com base nas leis contra o terrorismo e o cibercrime do país. Esse ambiente levou Khashoggi a exilar-se nos Estados Unidos.
Segundo a Repórteres sem Fronteiras, blasfêmia, insulto à religião, incitação ao caos, tentativas de colocar em risco a unidade nacional e difamações contra o rei Salman e o Estado são as acusações mais frequentes contra aqueles que demonstrem o desejo de denunciar a realidade saudita.
Atualmente, ao menos 28 jornalistas, produtores de conteúdo independentes e blogueiros estão presos no país. Entre eles, Raif Badawi, condenado a dez anos de prisão e a 1.000 chicotadas em 2014. Sua irmã, a proeminente ativista de direitos humanos Samar Badawi também foi presa por sua atuação nas redes sociais. Ela foi libertada sob fiança no dia seguinte, mas ainda é vítima de assédios e interrogatórios contínuos pela polícia.
Apesar da perseguição constante e dos inúmeros casos de comunicadores que tiveram de se exilar, os assassinatos são menos frequentes no país. O caso de Jamal Khashoggi, que chocou todo o mundo e colocou a Arábia Saudita sob intensa pressão internacional, foi o único de 2018. Mas foi cometido com elevada dose de crueldade, e, até o momento, não é conhecido o local onde o corpo do jornalista foi desovado – ou dissolvido.
A RSF emitiu um comunicado afirmando que a classificação da Arábia Saudita no seu ranking anual de liberdade de imprensa deverá cair em 2019 por causa da gravidade da violência e dos abusos contra os jornalistas.
Turquia
Depois do assassinato de Khashoggi no consulado saudita em Istambul, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan tornou-se um dos mais ativos críticos do governo de Riad e vem pressionando o reino para que os responsáveis pelo crime sejam punidos.
A Turquia, contudo, é um dos países que mais aprisionam jornalistas atualmente. Segundo algumas organizações de direitos humanos, o número de comunicadores detidos por Ancara já ultrapassa 140.
A imprensa turca foi particularmente afetada pela forte repressão instaurada pelo governo depois de uma tentativa de golpe, em julho de 2016. Valendo-se dos poderes reforçados pelo estado de emergência instaurado no país, Erdogan fechou mais de 150 meios de comunicação, entre jornais, revistas, emissoras de televisão e rádio, agências de notícias, editoras e sites na internet.
Além disso, mais de 2.700 comunicadores foram demitidos ou forçados a deixar seus cargos. Centenas perderam suas credenciais, 54 jornalistas tiveram suas propriedades confiscadas e um número ainda desconhecido teve seus passaportes revogados e foram proibidos de deixar o país.
Ao lado da Turquia, a China, a Síria, o Irã e o Vietnã são os países que mais aprisionam jornalistas, segundo o RSF.
O governo chinês mantém mais de cinquenta comunicadores presos atualmente. Usando modernas tecnologias, o presidente Xi Jinping também consegue impor um modelo social baseado no controle das notícias e das informações e na vigilância on-line de seus cidadãos.
Tanto a imprensa estatal quanto a privada, na China, vivem sob o controle rigoroso do Partido Comunista. Repórteres estrangeiros que tentam trabalhar no país também estão encontrando cada vez mais obstáculos e, em geral, o visto para coberturas da imprensa internacional depende de convite – e controle – de um meio de comunicação estatal chinês.
Já na Síria, a guerra civil tornou a nação uma das mais letais do mundo para jornalistas. Comunicadores são vítimas da violência de todos os lados: por parte de militares sírios e seus aliados, de rebeldes contrários ao regime de Bashar Assad, de grupos terroristas, das forças curdas e, mais recentemente, da incursão das forças turcas em Afrin, no início de 2018.
Intimidação frequente, prisões, sequestros e assassinatos criam um ambiente horrendo e perigoso para a imprensa no país.