Detroit renasce das cinzas e põe políticos em pé de guerra
A falida cidade dos automóveis é beneficiada pelo plano trilionário do governo Biden
Durante muito tempo a cidade-símbolo da superpoderosa indústria automobilística dos Estados Unidos, Detroit, no estado de Michigan, experimentou uma brutal decadência econômica. De olho no corte de custos, grandes montadoras fecharam as portas e migraram para países com mão de obra mais barata, como México e China. O sumiço dos empregos resultou em devastadora diáspora: quase 65% do 1,8 milhão de moradores foram embora, deixando para trás bairros fantasmas. A prefeitura, sem dinheiro em caixa, decretou a falência do município em 2013 e a deterioração seguiu seu caminho aparentemente irreversível. Errou, no entanto, quem jogou a toalha — o clima hoje é radicalmente diferente. No horizonte multiplicam-se guindastes e construções, indicando a retomada. Abandonada em 1988, a estação ferroviária Michigan Central Station reabrirá em breve, agora convertida em um centro tecnológico da Ford voltado para carros elétricos, com 10 000 funcionários. Amazon e Google confirmaram que fincarão escritórios lá.
O ritmo febril da revolução industrial de Detroit é sintoma de um fenômeno maior. Nos últimos dois anos, o governo de Joe Biden aprovou três projetos de lei dedicados a revigorar a indústria — um para a infraestrutura, outro para produzir microchips e o terceiro para o fomento de tecnologias verdes. A Casa Branca prevê a injeção de formidáveis 2 trilhões de dólares em investimentos públicos para reverter o longo declínio da manufatura americana, tirando do buraco os municípios esvaziados e empobrecidos do chamado Cinturão da Ferrugem, onde se situa Detroit. Também serão beneficiadas iniciativas sustentáveis, como a construção de parques eólicos e solares. “Essa multiplicação de empregos cria um ciclo virtuoso em cidades muito afetadas pela derrocada”, diz Gabriel Ehrlich, economista da Universidade de Michigan.
O plano desenvolvimentista de Biden marca uma reversão no receituário aplicado por republicanos e democratas desde Ronald Reagan, nos anos 1980. A fórmula consistiu em acordos de livre comércio, redução de impostos e pouca regulamentação, e foi responsável por conectar cadeias de suprimento espalhadas pelo globo, o que barateou bens e estimulou a economia digital. Ao mesmo tempo, porém, insuflou nos moradores de uma vasta região do país, menos educada e mais dependente de empregos nas fábricas, na construção civil e no setor público, um enorme ressentimento contra o establishment que os abandonou à própria sorte. Foi nesse segmento que Donald Trump, ironicamente um perfeito exemplar da execrada elite, fincou suas bases.
Trump conquistou milhões de eleitores denunciando o declínio da manufatura americana, efeito deletério da globalização abraçada por seguidos governos. A mensagem surtiu efeito e se disseminou. Políticos republicanos e democratas, rivais em todo o resto, privilegiam hoje em dia uma agenda nitidamente protecionista. “Estamos assistindo à maior mudança na política industrial americana em meio século”, garante Dani Rodrik, economista de Harvard. Unidos no objetivo comum, os partidos voltam a trocar impropérios, porém, quando se trata de um ponto crucial do projeto democrata: o tamanho da conta.
Levantamento da Universidade de Massachusetts Amherst mostra que o setor industrial deve criar 912 000 empregos nos próximos dez anos, a um custo de 98 bilhões de dólares — ou seja, cada nova vaga custará 100 000 dólares. No caso dos chips, um novo posto pode exigir investimento de até 5 milhões de dólares. De posse dessas projeções, o bloco republicano está exigindo vigorosos cortes de gastos como contrapartida para aprovar a elevação do teto da dívida pública — um problemão prestes a explodir. O limite de 31 trilhões de dólares foi alcançado em janeiro e, sem tomar mais empréstimos, o Tesouro não terá como honrar compromissos, possivelmente já em junho. Ciosa de seu plano de revitalização da indústria, crucial inclusive para um bom desempenho na eleição de 2024, a Casa Branca resiste aos cortes — implantados liberalmente em um contraprojeto aprovado pela maioria republicana da Câmara, mas que o Senado deve rejeitar — e tenta negociar outra saída. Regiões beneficiadas pelo renascimento fabril assistem, temerosas, à queda de braço, enquanto seguem se refazendo: em Detroit, a montadora Stellantis (ex-Chrysler) anunciou a inauguração de uma fábrica de automóveis, sua primeira na cidade em trinta anos.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841