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Desnorteado pela derrota para Trump, Partido Democrata vive crise de identidade

Grupo busca entender o que deu errado na eleição, enquanto procura novas lideranças para tentar sair do buraco

Por Ernesto Neves 30 nov 2024, 08h00

Quase um mês depois da eleição que consagrou a volta de Donald Trump à Casa Branca e a conquista pelos republicanos da maioria na Câmara e no Senado, o Partido Democrata americano segue atordoado, à deriva, com seus caciques atolados na mais intensa discussão da relação em décadas. Nas entrevistas e análises que tomam conta dos noticiários, blogs e podcasts, congressistas de alta plumagem, estrategistas e autoridades tecem uma infinidade de teorias para tentar explicar a derrota da vice-presidente Kamala Harris e a decepção na votação legislativa.

Nos bastidores, o clima é de guerra, com a ala mais conservadora denunciando a esquerda por radicalizar a agenda de costumes e o bloco progressista acusando os moderados de priorizar uma agenda econômica que favorece as elites das grandes cidades e ignora os anseios dos menos favorecidos. No balanço, os dois lados têm culpa no cartório.

O diagnóstico mais contundente partiu do senador Bernie Sanders, socialista que concorre como independente e vota com os democratas. “O Partido Democrata foi monopolizado pela política identitária e não se dá conta de que a vasta maioria das pessoas neste país é da classe trabalhadora”, disparou. “Vamos ver se ele tem capacidade de se renovar, dada a sua dependência de financiadores e consultores”, acrescentou, desatando uma troca de acusações que já dura semanas. Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara e tida como um falcão da ala pragmática, rebateu argumentando que os democratas jamais abandonaram suas bases e que a responsabilidade pela derrota é de Joe Biden. “Se o presidente tivesse saído antes, poderia haver outros candidatos na corrida”, disse. A escolha em cima da hora, é verdade, impediu o surgimento de um nome forte durante o processo de eleições primárias. “A derrota se deve a vários fatores, mas o principal é que os democratas falharam em criar uma mensagem eficaz contra Trump e em atentar para a insatisfação com o governo Biden”, diz Heather Richardson, historiadora do Boston College.

A rigor, o mau humor dos eleitores com a economia, a imigração e as questões identitárias foi percebido e abordado por Biden e, mais ainda por Harris, que deu meia-volta em princípios do partido e tentou dourar a pílula do “radicalismo progressista”. Ao que tudo indica, porém, o vigor foi aquém do necessário. As mudanças na sociedade que Trump descortinou e soube explorar estão, há já algum tempo, provocando um realinhamento de forças dentro do Partido Democrata.

CULPA DE QUEM? - Bate-boca: Sanders critica o partido; Pelosi, o presidente
CULPA DE QUEM? - Bate-boca: Sanders critica o partido; Pelosi, o presidente (Matthew Hatcher/Mandel Ngan/AFP)
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Uma análise das propostas de deputados democratas em andamento mostra maioria de posições mais alinhadas à direita, sobretudo as que estão relacionadas com a imigração, hoje um fantasma que Trump colou ao crime e que aterroriza os americanos. Ciente da sensibilidade do tema junto à opinião pública, a governadora democrata do Arizona, Katie Hobbs, afastou-se da tradicional complacência partidária com os ilegais e defende tolerância zero para eles. Ela reforça que essa “não é uma questão republicana ou democrata” e que vai trabalhar “com qualquer um” ​​para manter a fronteira segura.

Por quase um século, o Partido Democrata foi “o partido do povo”, que servia em Washington de barreira contra os interesses dos poderosos, mais alinhados com os republicanos. Ao longo da última década, porém, o povo — pretos, latinos, pessoas sem formação universitária, moradores da área rural, enfim, quem ganha menos — foi perdendo emprego e poder aquisitivo, se assustando com o radicalismo das questões de gênero, se sentindo acuado no quesito segurança e, aos poucos, se afastou e se desiludiu com a elite política que manda no país. O novato Trump, tarimbado show­man, introduziu em sua primeira campanha uma retórica populista que enfraqueceu ainda mais os laços entre democratas e eleitores e promoveu a mudança tectônica agora observada.

Pesquisa recente do instituto Pew Research aponta que metade dos americanos concorda que o Partido Republicano representa os interesses de pessoas como eles, o maior índice desde que Trump entrou em cena, em 2016, enquanto 43% acham o mesmo sobre os democratas, a primeira vez em oito anos que a legenda ficou na lanterna. A reconstrução começa em 1º de fevereiro, dez dias após a posse de Trump, quando o Comitê Nacional elegerá o próximo líder democrata — e não haver um nome óbvio diz muito sobre a confusão lá dentro. Uma de suas tarefas será justamente incentivar a ascensão de lideranças da nova geração, capazes de galvanizar novamente o público. “O partido precisa oferecer uma visão de futuro aos que hoje se sentem deixados para trás”, avalia Jeremy Paul, cientista político da Northeastern University. E rapidamente, porque as eleições de meio de mandato estão logo ali na esquina.

Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921

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