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Depois do aborto, Suprema Corte americana se volta contra as cotas raciais

O mal maior da decisão é enfraquecer a consciência de que desequilíbrios sociais arraigados têm de ser combatidos com ampla mobilização popular

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h21 - Publicado em 2 jul 2023, 08h00

Regidos por uma Constituição-modelo, enxuta e garantidora dos direitos dos cidadãos, os Estados Unidos se veem sacudidos, no período de doze meses, por duas revisões de decisões da Suprema Corte — o órgão que interpreta e decide sobre questões constitucionais — que enterram concepções estabelecidas e integradas ao cotidiano da sociedade há meio século. Primeiro foi o acesso ao aborto: em junho do ano passado, o tribunal anulou o precedente que oficializou a opção pelo procedimento em todo o território nacional e entregou a palavra final a cada estado. Agora é o sistema de cotas para negros em universidades, uma conquista do movimento civil dos anos 1960, que acaba de ser detonada pela maioria conservadora (6 dos 9 juízes) da corte, na quinta-feira 29. “É uma decisão que respira conservadorismo. No âmbito da jurisprudência, o entendimento anterior não poderia ser revertido”, afirma Richard Lempert, professor de direito da Universidade de Michigan.

Manifestação típica da ação afirmativa, nome dado às iniciativas públicas e privadas para estimular a ascensão social de negros e, posteriormente, hispânicos, o sistema de cotas no ensino superior se solidificou com o parecer da Suprema Corte no processo Universidade da Califórnia vs. Bakke, há 45 anos. Contestado em duas ocasiões, foi mantido em ambas. Agora, na terceira, envolvendo ações movidas contra as universidades de Harvard e da Carolina do Norte, não resistiu. Na prática, a decisão muda pouca coisa, visto que as escolas sempre podem adotar outros critérios, como situação financeira precária, para favorecer minorias — e muitas já o fazem. O mal maior é enfraquecer a consciência de que desequilíbrios sociais arraigados têm de ser combatidos com ampla mobilização popular.

Os processos de agora foram movidos pela Students For Fair Admissions (SFFA), organização empenhada em coibir o uso de políticas de “consciência racial” em toda e qualquer circunstância. A SFFA, representando 20 000 estudantes, acusa os programas de ação afirmativa de Harvard e da UNC de prejudicar candidatos asiáticos, mesmo sendo eles 30% dos alunos em Harvard (menos de 20% são negros). A organização sustenta que a balança das admissões é manipulada e que há duas décadas a probabilidade de asiáticos serem aceitos é um terço menor do que a de negros. As universidades não negam, e insistem que todos se beneficiam de um corpo estudantil diversificado.

DERROTA - Washington: manifestantes apoiam políticas de ação afirmativa
DERROTA - Washington: manifestantes apoiam políticas de ação afirmativa (Eric Lee/The Washington Post/Getty Images)

O impacto das políticas de ação afirmativa é considerado amplamente positivo. No caso do sistema de cotas nas universidades — que precisam se encaixar no chapéu de “incentivos” e não podem ser numéricas, ao contrário do Brasil —, o livro The Shape of the River, maior levantamento de dados sobre o assunto, comprova que os estudantes beneficiados têm mais chances de se formar e obter bons salários. “A ação afirmativa é um motor de mobilidade social”, avalia Estela Bensimon, professora de pedagogia da Universidade do Sul da Califórnia. Dominada por brancos há quarenta anos, a classe média americana tem hoje composição mais plural (59% de brancos, 12% de negros, 18% de hispânicos e 10% de “outros”) e a população negra de alta renda cresceu 7 pontos, para 15%. O nó da questão é até quando um sistema como o de cotas deve durar — e ele tem necessariamente um prazo de validade, visto que seu objetivo é bem definido. “Ainda há desigualdade racial, mas podemos combater essa lacuna com incentivos para estudantes de baixa renda em geral”, sugere Richard Kahlenberg, autor do livro O Remédio: Classe, Raça e Ação Afirmativa — até porque segue sendo duas vezes mais provável, na ponta do lápis, que negros e hispânicos sejam pobres, comparados a brancos.

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As políticas de ação afirmativa são, em geral, ponto de honra dos dois partidos: o Democrata é a favor e o Republicano, contra. Diante da mais do que esperada decisão da Suprema Corte contra as cotas, caberia aos congressistas democratas apressar a votação de projetos de lei assegurando sua permanência, mas propostas polêmicas passam hoje ao largo da Câmara e do Senado, irremediavelmente engessados pela divisão ideológica. Entre a população, as cotas raciais perderam apoio: 63% dos americanos se opõem ao uso de raça como critério de admissão no ensino superior, embora 61% sejam a favor de que se considere a situação financeira do candidato. Nesse contexto, pelo menos nove estados, inclusive a democrata Califórnia, já passaram por plebiscitos em que ser pobre substituiu ser negro ou hispânico no acesso preferencial à universidade. Na sua vez, a maioria conservadora da Suprema Corte optou por abrir a porteira e deixar a boiada do obscurantismo atropelar mais uma suada conquista social.

Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848

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