Déficit de bebês: o declive nos índices de natalidade em tempo de pandemia
Nada de baby boom. O avanço da Covid-19 acentuou uma tendência que vinha de antes — e já faz populações começarem a encolher
No começo do ano em que todo mundo ficou preso em casa, imaginou-se aquilo mesmo: que o resultado de tamanha proximidade seria, nove meses depois, uma explosão de bebês pelo planeta. Mas agora se constata que aconteceu o contrário — em vez do esperado baby boom, a preocupação com o futuro espalhada pelo novo coronavírus ocasionou um baby bust (derrocada, em inglês), como está sendo chamada a queda na taxa de natalidade em quase toda parte. Em paralelo, a taxa de mortalidade aumentou significativamente no mundo inteiro, e a junção dos fatores fez de 2020 um ano demograficamente atípico. Passada a fase pandêmica, porém, a média anual de mortes deve retornar à normalidade. Já o recuo acentuado nos nascimentos provavelmente só fará se agravar no futuro, visto ser uma tendência global que se observa há anos. “O baque mental e financeiro da pandemia afetou e continuará afetando a natalidade de forma sem precedentes”, diz Cho Youngtae, demógrafo da Universidade Nacional de Seul.
O dado mais alarmante até agora vem justamente da Coreia do Sul, onde o governo fez tudo certo em matéria de controle da pandemia. Graças a uma combinação de testes em massa com rastreamento de contatos e distanciamento social, o país, sem um único dia de lockdown total, fechou 2020 com menos de 1 000 mortes por Covid-19. No entanto, no mesmo período nasceram apenas 275 800 bebês, uma queda de quase 10% em relação a 2019, enquanto o total de mortos crescia 4,3%, para 308 000. E assim, pela primeira vez na história, o número de habitantes ali pôs-se a encolher. A trilha já estava traçada: o crescimento da população passou de 1,5%, em 2010, para 0,05%, em 2019. Mas, segundo os especialistas, foi a crise na saúde que fez a balança pender de vez para o negativo. “A partir de agora, os nascimentos não mais conseguirão superar as mortes”, adianta Cho Youngtae.
A baixa natalidade afeta de forma semelhante boa parte do mundo desenvolvido e é motivo de estudos e preocupações. A amplificação do fenômeno ainda está longe: ele só deve se reproduzir em dimensões planetárias lá por 2100, segundo as projeções da ONU. Mas o balé das curvas demográficas já tira o sono dos governos e os faz agir, no aqui e agora, inapelavelmente. Uma população com menos bebês naturalmente envelhece — e isso impõe à humanidade o desafio de seguir avançando economicamente com menos braços no mercado. No planeta atual, de 7,7 bilhões de habitantes, a razão é de sete adultos na ativa para cada idoso. No próximo meio século, serão apenas quatro. Esse cenário vai exigir um ganho de produtividade — ou, na linguagem popular, se fazer mais com menos —, e ainda bem que as conquistas tecnológicas estão aí para ajudar a alimentar essa engrenagem. Ela terá de funcionar a toda para suprir a inevitável subtração de jovens por vir. Um estudo da Universidade Católica de Milão, que ouviu gente de 18 a 34 anos da Itália, Alemanha, França, Espanha e Reino Unido, mostra que mais de dois terços dos jovens planejam adiar ou desistiram de ter filhos por causa da pandemia.
Nos Estados Unidos, país no qual a população tem declinado consistentemente, a Brookings Institution, que trata de políticas públicas, prevê até 500 000 menos nascimentos em 2021, em razão das preocupações com a Covid-19. Na Itália, em processo de encolhimento da população desde 2015, os nascimentos tiveram em 2020 uma redução de 3% em relação a 2019, período que já havia registrado o menor número de bebês em 150 anos. No Japão, cujo índice de reposição de habitantes ficou negativo em 2010, o número de bebês em 2020 também foi o mais baixo desde que os registros começaram a ser computados, em 1899.
A pandemia exacerbou aspectos que já vinham contribuindo para a redução da natalidade em diversas partes do planeta. No ano passado, a agência Yonhap informou que um quinto dos sul-coreanos que se casaram em 2015 ainda não tinha filhos, uma virada de conceitos que teve como consequência a menor taxa de natalidade do mundo: 0,92 filho por mulher em 2019, 0,86 em 2020 e previsão de 0,83 em 2021, muito abaixo dos 2,1 necessários para que um país mantenha sua população. No Brasil, a conta está em 1,7.
Na Europa, a situação se agrava pelo fato de os jovens ainda sentirem de perto os efeitos da recessão de 2008, que dificultou os ritos de passagem para a vida adulta: conseguir um emprego estável, comprar uma casa e constituir família. A crise atual também tem um impacto psicológico significativo, impulsionado pelo medo de ficar doente, pelo desconforto dos confinamentos e pelas mortes de entes queridos. As mulheres passaram a evitar a gravidez ainda por não poder estar acompanhadas no parto e não ter a mãe por perto depois dele, além do temor de transmitir Covid-19 aos bebês e da parcela desproporcional das tarefas domésticas que assumiram durante a quarentena. Um estudo nos Estados Unidos, do Instituto Kinsey, acrescenta outro ângulo: quase metade dos adultos consultados relatou diminuição na atividade sexual. “O estresse é um dos maiores inibidores do desejo”, diz o psicólogo Justin Lehmiller, autor do estudo.
A reposição populacional no Brasil também foi marcadamente afetada pela pandemia: em 2020, houve uma queda de 7,5% nos registros de nascimentos, em relação ao ano anterior, enquanto os óbitos davam um salto de 15%. O país ainda não entrou na fase de recuo sistemático da natalidade, mas caminha para ela sem ter tirado o devido proveito do chamado bônus demográfico — o bom período em que a população economicamente ativa supera a fatia de idosos e crianças. A chance de se beneficiar dessa janela, elevando a produtividade e fazendo a economia deslanchar, infelizmente passou. A previsão é de que a proporção de idosos triplique até 2060, enquanto o índice de fecundidade cai, inapelavelmente, desde os anos 1960, em todas as classes sociais e regiões do país.
Os governos das nações já duramente atingidas pela queda na natalidade estão tomando uma série de providências destinadas a estimular casais a ter filhos e, assim, amenizar o problema mais imediato e visível do menor número de jovens e da maior população idosa: o peso sobre o sistema previdenciário. Na Alemanha, avançam os projetos destinados a manter as fronteiras abertas à imigração, um ponto delicado e polêmico, alimento para reações absurdamente xenófobas, mas que vem sustentando o crescimento populacional no país. A Itália, entre outras providências, está se preparando para recompensar o terceiro filho nascido em 2019 e 2020 oferecendo à família um lote de terras agrícolas por vinte anos e empréstimos a juro zero para a construção de uma casa no local. No Japão, além de o governo já ter introduzido em 2019 plataformas de paquera no estilo do Tinder para facilitar encontros (e, posteriormente, casamentos), o primeiro-ministro, Suga Yoshihide, quer que os planos de saúde passem a cobrir tratamentos de fertilização in vitro. O presidente sul-coreano Moon Jae-in, por sua vez, lançou um programa de bolsa-bebê: famílias receberão 1 850 dólares para cada criança nascida, além de um pagamento mensal de quase 300 dólares até o bebê completar 1 ano de idade.
Experiências anteriores indicam que o declínio nas taxas de natalidade após catástrofes pode ser revertido rapidamente: a fertilidade caiu após a epidemia de Gripe Espanhola, de 1918, o surto de Sars de 2003, em Hong Kong, e a passagem do furacão Katrina no sul dos Estados Unidos, mas se recuperou logo depois. A incógnita, neste momento, reside na duração da crise. “Estamos vivendo uma situação historicamente nova. Nunca enfrentamos bloqueios nacionais generalizados por um período tão longo”, diz Martin Bujard, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisa Populacional da Alemanha (BiB), país que encolheu em 2020 pela primeira vez em uma década. Só o tempo dirá se o desejo de ter filhos, que já esteve no centro das ambições masculinas e femininas, recuperará seu lugar de honra na vida dos casais.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723