Correspondência do mítico alpinista George Mallory mistura amor e ciência
Cartas do britânico, que morreu há 100 anos ao tentar chegar ao topo do Everest, acabam de ser publicadas on-line
Seria um ganso-indiano, o pássaro recordista de alturas que na primavera e no verão do Himalaia é visto ao redor do Everest? Não. Na semana passada, um drone voou do acampamento-base para o acampamento 1 da maior montanha do mundo, e a 5 500 metros de altura entregou três cilindros de oxigênio e 1,5 quilo de suprimentos — de sobra, na volta, transportou mais de 15 quilos de lixo acumulados entre a rocha e a neve.
O veículo voou durante dezessete minutos, com ventos superiores a 50 quilômetros por hora e temperaturas abaixo de zero grau. Em nota, a empresa chinesa DJI comemorou o feito. “O equipamento tem potencial para revolucionar o montanhismo no Everest.” Não por acaso, para iluminar o sucesso da empreitada, a operação ocorreu na semana em que, há 100 anos, o alpinista britânico George Mallory e seu parceiro, Andrew Irvine, morreram ao tentar chegar ao cume pela face norte do colosso. O corpo de Mallory seria encontrado apenas em 1999 — em mito que só ganhou relevo. A façanha do desbravador atravessou o tempo como sinônimo de coragem, de zelo e conhecimento científico, apesar do desenlace trágico. Cabe então perguntar: com instrumentos como o treco oriental, lá pertinho do infinito, a dupla teria sobrevivido? Talvez sim, talvez não.
Vale, então, mergulhar em um tesouro que acaba de ser publicado, e de livre acesso, pelo Magdalene College da Universidade de Cambridge, por meio do qual é possível traduzir os humores de Mallory quando tentava o impossível: cravar a bandeira britânica lá no topo, a 8 849 metros, em marca que só seria alcançada por Edmund Hillary e o xerpa, nativo do Nepal, Tenzing Norgay, em 1953. A preciosidade é a coleção de cartas trocadas entre o esportista e sua mulher, Ruth, entre 1914 e 1924. Convém, portanto, para compreender a estatura do material, ir logo para as derradeiras, antes do sumiço, evidentemente, que foram resgatadas intactas dentro da mochila de Mallory, preservadas magicamente pelo gelo e pela neve. “Querida, eu te desejo o melhor que posso — que sua ansiedade tenha um fim antes de você receber esta carta —, com as melhores notícias. Que também serão as mais rápidas. São 50 para 1 contra nós, mas ainda vamos tentar e nos orgulhar. Grande amor para você. Sempre seu amoroso, George”, escreveu. De Ruth: “Tento manter-me bastante alegre e feliz, mas sinto muito sua falta. Acho que quero sua companhia ainda mais do que costumava querer. Sei que fui bastante irritante e desagradável algumas vezes e sinto muito, mas o motivo principal quase sempre foi porque estava infeliz por ter tão pouco de você”.
As descrições — para além do choro da distância — começam com as primeiras impressões do terreno, tempo sem GPS, é evidente, e de escassos mapas. Atravessam episódios terríveis — como a avalanche que arrastou oito xerpas — e, aos poucos, vão se aproximando do graal desejado, a vitória do ser humano sobre as forças da natureza, em uma época em que pôr os pés na Lua era sonho distante. As missivas iluminam os personagens (o corpo de Irvine nunca foi encontrado), mas são insuficientes para desvendar todos os mistérios. Há, ainda hoje, a crença de que teriam chegado até o ponto final. “Mallory assumiu riscos para ultrapassar os limites, como mostra parte da correspondência, e no final das contas isso lhe custou a própria vida”, disse a VEJA Katy Green, arquivista do Magdalene College.
As especulações são alimentadas pelo desaparecimento da câmera fotográfica, que poderia conter evidências dos passos da empreitada. Além disso, um retrato de Ruth, que o marido prometera deixar no pico, sumiu. Ele o teria deixado lá no fim do mundo, a beijar as nuvens? “Saber se chegaram ao topo e, em caso afirmativo, por qual caminho, é indagação que concede ainda mais interesse à coleção digitalizada”, diz Green. O magnetismo do Everest é inegável. Desde o pioneirismo de 1953, com Hillary e Tenzing, mais de 6 000 pessoas se aventuraram na jornada. Cerca de 300 morreram. No ano passado, o Nepal emitiu 463 licenças para alpinistas estrangeiros, o maior número de todos os tempos. “Mallory teria ficado bravo e triste com tamanho movimento”, diz Green. “Ele nutria um grande amor e respeito pela natureza.” Um modo de saber o que pensava, portanto, é ir aos arquivos. E trata-se de consultá-los “porque estão lá”, para citar a famosa resposta à pergunta que fizeram a Mallory, querendo saber por que ele queria tanto galgar o Everest.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897