Como Portland, no Oregon, virou a capital do confronto
Há 100 dias que militantes contra o racismo e a violência policial protestam nas ruas da mais branca entre as metrópoles americanas
No turbilhão de protestos contra o racismo desencadeado em 25 de maio, quando um policial branco pressionou o joelho no pescoço de um negro, George Floyd, até matá-lo por asfixia, um ponto dos Estados Unidos vem se destacando pela mobilização de ativistas que não arredam pé da rua: os quarteirões que compõem o centro de Portland, cidade de 650 000 habitantes no estado do Oregon, na Costa Oeste — justamente a mais branca entre as grandes metrópoles americanas. Lá, há mais de 100 dias (o marco foi completado na terçafeira 1º), grupos contra o racismo e contra a violência policial se manifestam e, vira e mexe, se chocam, ora com forças de segurança, ora com turmas rivais, resultando em depredações e incêndios. No sábado 29, o saldo foi mais trágico: ao final de um confronto ainda mal explicado, a polícia encontrou um morador da cidade, Aaron Danielson, 39 anos, branco, estendido no chão, morto por um tiro no peito.
Danielson militava no “outro lado” — pertencia a um grupo de ultradireita nascido e criado na cidade, o Patriot Prayer. Sua morte ocorreu ao fim de uma semana particularmente convulsionada, em que um negro, Jacob Blake, ficou paralítico depois de levar sete tiros nas costas disparados por um policial em Kenosha, no estado de Wisconsin, e duas pessoas morreram nas manifestações que se seguiram. Embalado no papel de guardião da lei e da ordem que dá o tom de sua campanha eleitoral no momento, Donald Trump insuflou mais os ânimos ao ignorar os tiros em Blake, ao denunciar as “turbas violentas” formadas por “saqueadores e baderneiros” empenhados em promover “terrorismo interno” e ao justificar o adolescente que atirou nos manifestantes: “Ele caiu e foi violentamente atacado”.
A mais de 3 400 quilômetros de Kenosha, o militante centro de Portland ainda vibrava aos gritos de Black Lives Matter quando uma carreata de apoiadores de Trump resolveu atravessar o quadrilátero das mobilizações. Entre disparos de pistolas de paintball e jatos de spray de pimenta saídos dos carros trumpistas, rebatidos com garrafas e fogos de artifício arremessados das ruas, um tiro em local escuro e isolado atingiu Danielson — o primeiro a morrer na capital americana dos protestos.
O cotidiano de manifestações em Portland segue uma rotina. Elas começam sempre ao anoitecer, com marchas inicialmente pacíficas. Às vezes, acabam sem maiores incidentes. Em outras, pequenos grupos se deslocam e promovem incêndios e depredações. Em julho, agentes federais enviados por Trump à revelia do governo estadual instalaram uma praça de guerra na cidade, que foi rechaçada com gestos como a barreira de mulheres, o Muro das Mães, que se interpunha entre tropas e manifestantes, e eles acabaram tendo de ir embora. O tal “muro”, como quase todos os grupos que ocupam as ruas, é composto de brancos — 70% de uma população na qual só 6% são negros. Tanto a diferença na cor da pele quanto a mobilização atual contra o racismo são decorrentes do passado violentamente segregacionista do estado, que, após a guerra civil que acabou com a escravidão, praticamente proibiu os negros de cruzar a fronteira. “A homogeneidade racial e a segregação do passado despertaram um senso de responsabilidade nos moradores”, diz Paul Gronke, cientista político da Reed College.
Portland, da mesma forma que Seattle, São Francisco e outras grandes cidades da Costa Oeste, vota nos democratas e apoia causas progressistas, como a proteção do meio ambiente, a liberação da maconha e os direitos dos homossexuais. Cercada de natureza exuberante, com uma cena artística e musical vibrante e a promessa de empregos em startups e grandes conglomerados tecnológicos, a cidade atrai jovens, artistas e intelectuais em busca de uma vida mais calma, sem abdicar de bons restaurantes, cultura e opções de lazer. “Os últimos anos viram o crescimento do liberalismo nas questões sociais, lado a lado com o aumento da insatisfação e do ceticismo em relação ao governo”, aponta Gronke, que vive na cidade com a família há quase vinte anos. “Os últimos acontecimentos têm feito com que os protestos ganhem mais combustível”, completa Jeffrey Meiser, especialista em política americana da Universidade de Portland. No exato momento em que a maratona de protestos na cidade completava 100 dias, a polícia de Los Angeles atirou em mais um negro, aparentemente sem justificativa convincente, e o matou — o tipo de ato que insufla reações na mobilizada Portland. Até a cada vez mais polarizada eleição de 3 de novembro, a temperatura nas ruas da cidade, a despeito do fim do verão, deve continuar subindo.
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703