Como o motim de mercenários feriu a aura de poder inabalável de Putin
Caso deixou a impressão de que o líder todo-poderoso não é, ou não está, tão poderoso assim. O mundo aguarda os próximos capítulos
A notícia caiu como efeito de uma explosão de mil drones: mercenários do famigerado grupo Wagner, a tropa de choque da Rússia na invasão da Ucrânia, marchavam céleres na direção de Moscou, exigindo a deposição do alto-comando militar. O motim liderado por Yevgeny Prigozhin, aprendiz de oligarca que alia à função de comandante do Wagner o posto de fornecedor das iguarias servidas nos banquetes do Kremlin, durou apenas 36 horas e foi desmontado na base da conversa, mas, como não podia deixar de ser, causou arranhões na carapaça de seu ex-amigo do peito, o presidente Vladimir Putin. Nenhum amotinado está preso (até agora), um início de investigação foi engavetado (até agora) e as aparições em série de Putin — três pronunciamentos na TV e um raro discurso ao ar livre, na Praça Vermelha — reforçaram, em vez de atenuar, a impressão de que o líder todo-poderoso não é, ou não está, tão poderoso assim. Mesmo que não tenha grandes consequências, foi um golpe e tanto no currículo de um governante em guerra, e ainda por cima devendo uma atuação convincente na frente de batalha.
Depois de publicar um vídeo nas redes sociais, na sexta-feira 23, acusando o Exército russo de atacar suas bases e matar “grande quantidade” de combatentes — alguns corpos apareciam nas imagens —, Prigozhin convocou a tropa em solo russo e ucraniano — 25 000 homens, nas suas contas — para uma “marcha pela justiça” que terminaria com a demissão do ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e de Valery Gerasimov, o mais graduado general russo. Ambos foram alvos de abertas e furiosas críticas dele ao longo dos últimos meses — evidência de um cabo de guerra entre o comando militar formal e a força privada responsável pelos poucos avanços recentes no campo de batalha. Shoigu ordenara pouco antes que o grupo fosse desmobilizado e seus integrantes se inscrevessem nas fileiras do Exército regular até 1º de julho.
Nas 24 horas seguintes, os blindados do Wagner, sem resistência e até sob aplausos da população, tomaram conta de Rostov, nona maior cidade russa e um dos centros de comando da guerra na Ucrânia, e um destacamento de 6 000 soldados partiu para Moscou. A 200 quilômetros da capital, Prigozhin acertou um acordo e o motim acabou. “Pode não dar em nada, mas a humilhação pública pega mal para os ditadores que desejam se projetar como homens fortes”, avalia Natalya Chernyshova, da Queen Mary University of London.
Saiu ganhando na refrega Alexander Lukashenko, mandachuva de Belarus e mediador da paz. Ele relatou em entrevista recheada de autoelogios que em um telefonema dissuadiu Putin de matar sumariamente Prigozhin (“uma paz ruim é pior do que qualquer guerra”, teria proclamado) e, em outro, convenceu o chefe amotinado a depor armas (ou seria “esmagado como um inseto”) e aceitar o exílio em sua capital, Minsk. Também ofereceu “uma base abandonada” para abrigar os mercenários que quiserem seguir Prigozhin, sem esconder o entusiasmo em ter instrutores experientes para treinar suas próprias tropas. O integrante do Wagner que não quiser morar em Belarus tem duas opções: voltar para casa ou aderir ao Exército Vermelho. Prisão na Rússia mesmo (sem confirmação oficial), só de Sergei Surovikin, general que teria conhecimento prévio do motim e o apoiava. Se verdadeira, a acusação aponta um possível e perigoso racha na alta cúpula militar russa.
Em seus pronunciamentos, Putin, em tom zangado e sem falar o nome de Prigozhin, atacou os “traidores” que tentaram fazer “russos lutarem contra russos”, mas não conseguiram: “A sociedade russa inteira se uniu e se mobilizou” contra o motim, enfatizou. Em outro momento, assumiu o que nunca admitira antes: que o Kremlin financia o Wagner. Segundo ele, o governo chegou a injetar o equivalente a 1 bilhão de dólares no grupo neste pouco mais de um ano de guerra — sem contar outro bilhão pago ao negócio paralelo do comandante por jantares fornecidos a autoridades militares.
Grupos mercenários sempre estiveram em ação na Rússia, apesar de serem proibidos, e viraram um ótimo negócio desde a invasão da Ucrânia. Calcula-se que 25 lutem em território ucraniano, um deles, dizem as más línguas, formado pelo próprio ministro Shoigu. Tamanha é sua importância no aparato militar que o ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, afirmou que o Wagner, em desgraça na Rússia, seguirá presente na África. “Esse trabalho, claro, vai continuar”, prometeu Lavrov. Em meio à incerteza sobre novos desdobramentos em Moscou, Kiev denunciou que mísseis russos atingiram uma pizzaria lotada, matando dez pessoas, entre elas quatro crianças, e tropas ucranianas ganharam posições em torno de Kherson, cidade ocupada vital para o suprimento e o movimento de tropas russas. É a trágica guerra na Ucrânia seguindo seu roteiro — pela primeira vez, em segundo plano.
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848