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Como Merkel lidera o plano para salvar as finanças da Europa

Defensora ferrenha da responsabilidade fiscal, a alemã muda de lado e convence os líderes da União Europeia a se endividar para tirar o bloco da recessão

Por Ricardo Ferraz Atualizado em 4 jun 2024, 13h49 - Publicado em 24 jul 2020, 06h00

Depois de passar cinco meses separados pela pandemia, com contatos limitados a conferências via internet, os líderes dos 27 países da União Europeia se reencontraram em pessoa seguindo um novo protocolo: espalhados no enorme salão oval da sede em Bruxelas, a maioria de máscara e tocando cotovelo ao se cumprimentar. Mas essa não foi a única, muito menos a principal novidade. Na reunião que entrou para a história, o Conselho Europeu, como é chamado, aprovou um pacote de ajuda para sair do despenhadeiro econômico cavado pelo novo coronavírus, que sacode as estruturas do casamento de conveniência que sempre sustentou a UE.

Concordou-se que a Comissão Europeia, o órgão executivo, vai levantar 750 bilhões de euros no mercado financeiro — em si uma quebra de padrão, por superar em muito o teto de endividamento e comprometer a sagrada meta fiscal do bloco. Desse total, 390 milhões serão dados a fundo perdido às nações mais afetadas, espécie de jabuti em um arcabouço econômico aferrado à regra de nunca ceder dinheiro sem contrapartida. Na hora do vamos ver, os líderes europeus concluíram que a união, ainda que cercada de muxoxos e tapas na mesa, é a única chance de saírem fortalecidos do abismo. “É o acordo certo para a Europa neste momento”, disse o belga Charles Michel, presidente executivo do Conselho.

Desde que foi criada, a União Europeia tem o pão-durismo no DNA. O Norte, mais rico e bem resolvido, capitaneado pela Alemanha, sempre impôs metas e controles antes de liberar os euros que tinha no cofre tanto para novos membros quanto para velhos perdulários — leia-se Itália. Agora, Espanha, Grécia e, sempre ela, Itália, países especialmente impactados pela pandemia, que já estavam com a corda no pescoço e sem condições de se endividar mais, serão beneficiados não só com doações mas também com empréstimos generosos, que somam 360 bilhões de euros. O pacote foi alinhavado, outra surpresa, pela durona chanceler alemã Angela Merkel, em fim de mandato. A Mutter (mãe), como é chamada em seu país, e o presidente francês Emmanuel Macron anunciaram já em maio o plano de levar o pacote de bondades à reunião do Conselho. Os líderes das duas economias mais fortes do bloco tinham pressa de garantir um projeto conjunto de recuperação — a projeção é que o PIB da UE encolha 9% neste ano. “Merkel sabe que esta crise pode ser devastadora. A perspectiva de perder o equivalente a dez anos de riqueza teria profundo efeito no comportamento político e eleitoral dos europeus”, diz o cientista político Dominique Reynié, da Fundação pela Inovação Política, um instituto de pesquisa francês.

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Inicialmente prevista para acontecer em dois dias, a cúpula iniciada na sexta-feira 17 acabou avançando fim de semana adentro. Boa parte das noventa horas de conversas foi utilizada para afinar o discurso com Áustria, Suécia, Dinamarca e Holanda, países ricos que terão de colocar a mão no bolso para financiar o plano. “Os frugais”, como foram chamados, tendo à frente o primeiro-ministro holandês Mark Rutte, atuaram como cães de guarda da austeridade. Macron, irritado, deu entrevista classificando o grupo de “egoísta”. No fim, o pacote passou por ajustes para satisfazer os “frugais”, eles ainda conseguiram ressuscitar um antigo sistema de descontos progressivos nas contribuições dos países-membros e, enfim, cederam. “É de grande interesse resgatar a Itália e a Espanha, para que o comércio permaneça forte e uma crise maior seja evitada”, diz o economista Xavier Jaravel, da London School of Economics.

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Merkel também se armou de diplomacia — ou indulgência, na opinião dos detratores — para desarmar outra bomba: a oposição de dirigentes do Leste europeu, puxada por Hungria e Polônia. Os dois países, de governos ultranacionalistas, por um lado são da linha “cada um por si” e, por outro, estão na mira de sanções e multas da UE por medidas antidemocráticas. “Por que você me odeia tanto?”, perguntou o húngaro Viktor Orbán ao holandês Rutte, em um momento de lavagem de roupa suja. No fim, a questão das sanções foi posta em banho-maria e eles assinaram o acordo.

O plano de recuperação faz parte do orçamento de 2021 a 2027 da União Europeia, no valor total de 1,8 trilhão de euros. A inclusão do pacote no orçamento foi considerada uma manobra bem-sucedida no sentido de preencher com dinheiro novo, tomado no mercado, o buraco deixado pela saída do Reino Unido. Em compensação, aprová-lo exigiu cortes em áreas importantes, como saúde — em plena pandemia — e meio ambiente. Seja como for, depois do acordo alcançado em Bruxelas, que ainda será submetido ao Parlamento Europeu, a União Europeia não será mais a mesma.

Com reportagem de Caio Mattos

Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697

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