Com recursos modernos, a colorização de registros históricos volta à tona
O centenário processo traz vida a cenas dos grandes conflitos mundiais
“Totó, tenho a sensação de que não estamos mais no Kansas”, diz Dorothy ao seu cãozinho de estimação, maravilhada com a explosão de cores vibrantes ao redor. O entusiasmo da personagem de Judy Garland em O Mágico de Oz (1939) era resultado de uma transformação. Ela acabara de sair de uma realidade entediante, cinzenta e monocromática, arrastada por um tornado enfeitiçado. As cenas estão no início do clássico filme dirigido por Victor Flemming, inspirado na série de livros de L. Frank Baum. Era a estreia no cinema americano do Technicolor, um sistema de colorização em que as tomadas eram rodadas simultaneamente com três câmeras, cada uma carregada com bobinas de acetato tratadas em matizes diferentes — vermelho, verde e azul.
Na ficção, os tons começavam a ganhar espaço, avanço simbolizado por Oz. Contudo, nos registros jornalísticos e nos documentários, especialmente em torno das duas Grandes Guerras, o preto e branco ainda era a norma. Além de ser processo consagrado, mais barato e muito mais prático que o Technicolor, o claro-escuro tinha a característica adicional de tornar tudo mais sombrio e trágico.
Um movimento recente, o de colorização de cenas bélicas que aprendemos a ver em claro-escuro, em jogo de sombras, indica que pode haver dramaticidade tingida. O recém-lançado Vozes da Segunda Guerra, na Netflix — na trilha de Eles Não Envelhecerão (2018), da Amazon Prime, em torno da I Guerra, dirigido pelo neozelandês Peter Jackson —, pinta com cores vivas conflitos desbotados pela crueza das bombas. O efeito é o avesso do maravilhamento experimentado por Dorothy. O que brota é o desconforto, um incômodo, a descoberta de vida onde havia apenas morte.
Em Vozes da Segunda Guerra, o cineasta britânico Rob Coldstream escolheu momentos consagrados dos vários teatros de batalha espalhados pelos continentes entre 1939 e 1945 para colori-los e, assim, instalar o espectador diretamente nos locais onde aconteceram os eventos, seja no deque de um porta-aviões americano sob ataque de camicases japoneses, seja dentro de um tanque alemão da Divisão Panzer. É fascinante. Em Eles Não Envelhecerão, Jackson reuniu filmagens nunca antes vistas das trincheiras da Frente Ocidental entre 1914 e 1918. Com a ajuda de técnicos, tirou a palidez dos personagens retratados, soldados britânicos e alemães, para lhes conceder um pouco mais de humanidade. Disse o diretor, logo depois do ruidoso e bem-sucedido lançamento da minissérie: “Eles não viram a guerra em preto e branco, a presenciaram em cores”.
A pintura digital — mais rápida e mais simples do que nos primórdios do cinema — envolve cuidadosa pesquisa em documentos históricos. “Não há um jeito mágico de descobrir as cores apenas ao observar as escalas de cinza”, diz a fotógrafa e colorista Marina Amaral. O esforço pela recuperação dos detalhes, a vida como era ela, porém, é visto com reserva, especialmente em tempos de notícias falsas e inteligência artificial. “A manipulação da imagem sempre foi uma preocupação”, diz Eduardo Morettin, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. O nó: é correto manipular imagens datadas? Para além da reinvenção da verdade, ainda que inofensiva, brota um outro problema. O P&B embutia uma escolha. “As técnicas foram desenvolvidas para narrativas que pressupunham matizes de preto, branco e cinza”, afirma Luiz Fernando da Silva Jr., professor da ESPM. O belo Casablanca, de 1942, foi colorizado em 1988. Perdeu a graça. No caso das cores de guerras, o resultado é interessante. Trata-se de ver o passado com detalhes antes inexistentes.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874