Chorem por mim: paralisado, governo argentino afunda em impopularidade
Cabo de guerra entre o presidente e sua vice impede que graves problemas do país sejam resolvidos
Mesmo acostumados à fábrica de crises em que se transformou a convivência entre os peronistas Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, os argentinos foram brindados nos últimos dias com um racha ruidoso entre os supostos parceiros. O estopim foi o fato de o partido governista Frente de Todos perder as eleições primárias em dezoito das 24 províncias, incluindo Buenos Aires, e pôr em risco sua maioria no Congresso — uma prévia do que deve acontecer nas eleições legislativas de novembro. Kirchner atribuiu o descontentamento das urnas (o voto nas primárias é obrigatório) ao “arrocho econômico de Fernández” e pregou o retorno ao receituário clássico do peronismo em tempos de crise: a velha gastança populista bancada com impressão de dinheiro. “Não sou eu quem põe o presidente em xeque, é o resultado eleitoral”, disparou, convocando seus fiéis seguidores a ir às ruas contra o governo de que faz parte.
Fernández foi ao Twitter afirmar que “minha gestão continuará do modo que considero conveniente, para isso fui eleito” e, em seguida, cancelou a ida a Nova York para a abertura da Assembleia-Geral da ONU, só para não dar à vice o gostinho de assumir sua cadeira. Ela, no entanto, parece ter saído desse embate ainda mais poderosa: forçou uma reforma ministerial que pôs nas mãos de seu grupo a Chefia do Gabinete e a Secretaria de Comunicações, além das pastas da Segurança, Ciência e Tecnologia e Agricultura. O mau resultado de Fernández nas primárias está diretamente relacionado a sua inépcia em apresentar propostas novas para a economia em crise eterna. A inflação argentina deve fechar o ano em 48%, a segunda maior no continente, perdendo apenas para a insolvente Venezuela. A pobreza, drama que impacta o eleitorado descamisado de raiz e que a dupla Fernández-Kirchner prometeu combater, atinge 19 milhões de pessoas, cerca de 42% da população — um em cada dez argentinos encontra-se em situação de indigência.
A pandemia veio bombardear um cenário já em ruínas e aprofundar a insatisfação popular, por diversos motivos. A vacinação é lenta, com apenas 44% da população imunizada, o que impede a retomada mais vigorosa das atividades. É notório o favorecimento de parentes de políticos e grandes empresários na aplicação das doses. A opção pela vacina russa Sputnik V, em detrimento das americanas Pfizer e Moderna, é questionada. Como se não bastasse, o presidente desatou uma onda de repúdio nacional ao vazarem fotos e vídeos da festa de aniversário de sua mulher, Fabíola Yañez, em agosto, quando ele cobrava do resto da população respeito à rígida quarentena. “Somente o núcleo mais fiel permanece ao lado do governo”, afirma María Lourdes Olivera, da Universidad Católica Argentina.
A Argentina é refém hoje de décadas de instabilidade política e econômica, açoitada por uma espiral inflacionária incontrolável, que por um lado faz com que o peso perca valor e destrói o poder de compra da população e, por outro, impede que o Estado quebre, ao diluir o valor das dívidas públicas — o que não impediu oito calotes até agora nos credores internacionais. O presidente anterior, Mauricio Macri, um raro não peronista eleito para mudar esse estado de coisas, vergou diante das dificuldades encontradas. Fernández entrou com a ideia de controlar Kirchner e buscar saídas sem abandonar os princípios tradicionais. Deu-se mal nos dois propósitos. “As disputas de poder acontecem desde o primeiro dia de governo e não há trégua possível”, acredita Alejandro Coronel, professor de administração pública da Pontificia Universidad Católica, de Buenos Aires. Em crise eterna, a situação da Argentina segue sendo de chorar.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757