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China: vem aí o Ano do Rato

Os chineses miram o espaço, a estrada que conduz ao domínio que só as superpotências têm, mas o minúsculo camundongo de Hong Kong não vai parar de incomodar

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 15h16 - Publicado em 3 jan 2020, 06h00

Olhando pelo lado positivo, o ano do rato deveria trazer segurança e prosperidade à China, fora uma ou outra tempestade. Sem contar o 5G, que está sendo implantado em velocidade estonteante. O maior rival, o adversário a ser suplantado, parece jogado no chão do ringue, com um presidente, justamente o que ousou desafiar o Império do Centro, sob impeachment, e uma sociedade em que uma metade odeia a outra, sem espaço para negociação — receita garantida para o fracasso. Não existe um cisne negro à vista (ou incidentes imprevisíveis) nem um rinoceronte da mesma cor (os riscos que estavam evidentes e ninguém viu), metáfora corrente na China sobre perigos econômicos que o megapoderoso Xi Jinping voltou a usar no começo de 2019, o ano do porco.

Olhando pelo lado negativo, o ciclo do rato, iniciando-se depois do ano-novo lunar, em 25 de janeiro, traz um grande potencial de instabilidade — um dos elementos mais abominados tanto pelos chineses comuns quanto pelas elites dirigentes. E, se a China balança, o resto do mundo leva um tombo, como viram todos os exportadores de matérias-primas, Brasil inclusive, quando a economia chinesa deu uma ligeira freada em seu gargantuesco crescimento. O mais estranho e imprevisível elemento, o cisne negro político que desabou do nada, é o movimento democrático de Hong Kong. De motivo de orgulho nacional (os pérfidos ingleses foram obrigados a devolver a antiga colônia simplesmente na base do quem pode mais) e fonte de espetaculares e mutuamente benéficos negócios, o punhadinho de ilhas mais uma faixa em terra firme, com meros 7,6 milhões de habitantes, uma gotícula no grande oceano de 1,4 bilhão de chineses, se transformou numa encrenca sem paralelos.

Comparar os jovens honcongueses de altíssimo nível educacional e tecnológico com os estudantes massacrados na Praça da Paz Celestial, em 1989, é quase como buscar equivalências entre eras geológicas diferentes. Sem os vícios da doutrinação comunista, com uma renda per capita de 40 000 dólares, o sentimento de superioridade que vem do legado britânico (incluindo a vida em inglês desde o berço) e o “regime especial” que deveria garantir condições únicas de autonomia, entre elas as liberdades básicas, os manifestantes de Hong Kong são uma espécie de encarnação pós-moderna do espírito libertário da juventude. Até mesmo por sua posição única em relação aos tantos movimentos ocorridos no último ano: eles reivindicam garantias democráticas contra o mais poderoso e menos democrático dos regimes. É um jogo de low-tech e high-tech. Os jovens usam guarda-chuvas e ponteiras de laser para se proteger do onipresente sistema de identificação facial, celulares encriptados e humor sarcástico para enfrentar o maior exército digital do planeta. Cantam o hino nacional americano, pedem a ajuda de Trump e reproduzem cartazes com memes em que ele se exalta como um herói de filmes classe B — existe maneira mais precisa de usar a força do adversário contra ele mesmo e irritar Xi Jinping?

Guarda-chuvas, ponteiras de laser e humor contra o menos democrático dos regimes

Mas o adversário não tem nada de bobo, muitíssimo pelo contrário. Quer vencer pela paciência, ciente de que o uso maciço da força seria contraproducente, dando corda bem medida aos manifestantes para atrapalhar a vida dos cidadãos comuns até que peçam para parar. Não aconteceu em 2019 e dificilmente vai acontecer em 2020. Xi Jinping sabe quando apertar e quando recuar. Um sinal de alta habilidade política, mesmo quando os recuos são apenas da boca para fora. Um exemplo: no último ano, ele simplesmente apagou dos documentos oficiais todas as referências ao Made in China 2025, o plano de redirecionar a economia para os maiores setores de alta tecnologia, como as indústrias aeroespacial, robótica e de inteligência artificial. A ambição estratégica assumida do plano, sem contar as táticas — espionagem, roubo de propriedade intelectual, infiltração em universidades —, despertou ampla antipatia externa. Solução? Sumir com o nome do projeto. Sem mudar uma vírgula em seus objetivos.

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E o modo de alcançar o objetivo final, a vitória como superpotência dominante, está cada vez mais na próxima fronteira. Numa palestra que chacoalhou sensibilidades, Steven Kwast, general da reserva da Força Aérea americana e candidatíssimo a ser o comandante da recém-criada Força Espacial, foi cristalino. “Podemos dizer que somos dominantes no espaço, mas temos de olhar para as tendências, e eles vão nos ultrapassar nos próximos anos se não fizermos nada.” A China, avisou Kwast, já está construindo uma “Marinha no espaço”, o instrumento para dominar os quatro motores da economia terrestre: transporte, informação, energia e manufatura. “Quem ganhar este novo mercado vai estabelecer seus valores. Podemos ter os valores da nossa Constituição ou os valores que vemos manifestos na China.”

Hong Kong é o espelho conturbado desses valores. O que acontecer lá se refletirá no resto do mundo. Conseguirão o rato que ruge e o dragão que esmaga alcançar uma saída mutuamente aceitável ou será, tragicamente, mais uma vez imposta a lei da força?

Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668

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