China: prestes a completar 100 anos, o partido tem a força
O PC domina a vida da população e interfere na direção das empresas sem perder a popularidade alimentada pela prosperidade econômica
Onipresente na vida de 1,4 bilhão de pessoas, o Partido Comunista da China completa no dia 1º de julho um século de existência, forte e bem-disposto depois de atravessar tremendas transformações políticas, econômicas e sociais sem maiores arranhões na carapaça. Ao longo de sua trajetória de partido vermelho há mais tempo no poder, superando a fome que dizimou milhares de chineses, a morte do fundador Mao Tsé-tung, em 1976, a derrocada do comunismo ocidental e momentos de convulsão social, como o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, o PC chinês foi forjando a ferro e fogo (e muitas vezes, crueldade) uma imagem de fiador da estabilidade em um país complexo. Dominante em todos os aspectos da vida nacional, o partido também colhe os louros de décadas de prosperidade e de distribuição de riqueza para a população — ainda que a contrapartida desse contrato social seja a total obediência a seus desígnios ou a prisão. Resultado: chega aos 100 anos desfrutando popularidade sem precedentes.
A aura de partido político mais poderoso do planeta foi reforçada, espanada e polida a partir de 2013, quando Xi Jinping assumiu a Presidência com o propósito de moldar a autoridade do PC à sua própria, fazendo dos dois uma única e superpoderosa voz autoritária de comando. Que, aliás, não pretende se calar tão cedo — uma das primeiras providências do presidente foi extinguir o limite de dois mandatos e abrir a chance de se eternizar no poder. Sob Xi, o partido ampliou seus tentáculos, apertou os controles sobre empresas, passou a monitorar ainda mais de perto os cidadãos e extinguiu focos de oposição — tudo isso sem perder o passo do progresso. Apesar de a pandemia que paralisou o planeta em 2020 ter eclodido em Wuhan, no centro do país, e de lá se espalhado pelo mundo, a China foi a primeira a se recuperar e prevê crescimento de 8,4% neste ano.
Programado para se estender até o fim do ano, o calendário de comemorações dos 100 anos repisa a ideia de que o Partido Comunista é o maior responsável pela ascensão da China à condição de superpotência, capaz de empatar economicamente com os Estados Unidos até o fim da década e, se tudo der certo, passar à frente até 2035 (veja no quadro). A projeção é motivo de orgulho para os chineses, chacoalhados pela mais ousada onda de ascensão social da história, que elevou 850 milhões de pessoas carentes de tudo para a classe média em quatro décadas. “Garantir que os pobres sejam beneficiados pelo progresso é uma promessa solene feita por nós”, proclamou Xi, ao anunciar o fim da miséria em dezembro de 2020. Como parte dos festejos, os cinemas têm ordem de exibir semanalmente “programação patriótica”, isto é, filmes que ressaltam a luta comunista para modernizar a China. O governo está estimulando o “turismo vermelho”, que celebra lugares relacionados à história do partido e tem entre os roteiros mais procurados os locais de batalhas da guerra civil, conflito que culminou com a tomada do poder, em 1949, pelo exército de Mao Tsé-tung — o Exército Vermelho, o maior do mundo e uma das bases de sustentação do regime. “É fundamental para Xi Jinping e para o partido atrelar o progresso da China à sua narrativa”, diz Bates Gill, especialista em história da Ásia da Universidade Macquire, de Sydney.
Em seu século de poder, o PC chinês passou por duas fases de declínio especialmente tormentosas. Uma se deu logo após a morte de Mao. De erro em erro — como a transferência forçada dos chineses da cidade para o campo, que resultou em fome generalizada, e a Revolução Cultural, que perseguiu e matou intelectuais e erradicou o pensamento crítico —, o endeusado Timoneiro da Revolução saiu de cena deixando a população decepcionada com o comunismo e a política em estado de caos. A salvação da pátria, quase que literalmente, foi a entrega do comando a Deng Xiaoping, que a partir de 1978 instituiu a mescla de economia de mercado com autoritarismo do governo central que levantou a China e permanece em vigor.
Nos quase vinte anos entre a morte de Deng e a chegada de Xi à Presidência, o partido perdeu força, enredado em burocracia e corrupção, problemas que fizeram desabar a União Soviética. Xi, então, começou a promover um arrasador expurgo no funcionalismo: 1 milhão de servidores foram punidos e, no primeiro escalão, 170 acabaram demitidos e, em muitos casos, presos. O presidente também expandiu de forma inédita o controle do Estado sobre a economia. Hoje, calcula-se que o PC seja responsável por administrar 40% do PIB, cerca de 6 trilhões de dólares. Figurões da sigla passaram a ocupar assento no conselho diretor das joias mais cintilantes do capitalismo chinês, como a empresa de telefonia Huawei, o site de buscas Baidu e o gigante da tecnologia Tencent, a quinta marca mais valorizada do mundo, avaliada em 240 bilhões de dólares. Em troca, as empresas recebem subsídios maciços do governo. “Quanto mais o setor privado cresce e se torna globalizado, mais aumenta a preocupação do partido de perder o controle sobre essa nova elite”, diz Mary Gallagher, diretora do Centro de Estudos Chineses da Universidade de Michigan.
A impressionante estrutura do Partido Comunista dá a medida de sua influência tanto para implantar políticas de desenvolvimento econômico quanto para esmagar quem tenta se rebelar. Instalado na capital, Pequim, o comando é centralizado no presidente Xi e nos 25 membros do Comitê Central, o Politburo. Dali saem as orientações para 5 milhões de células partidárias espalhadas por todo o imenso território chinês, às quais estão filiadas 91 milhões de pessoas. Muita gente fica de fora — ter a carteirinha do partido é garantia de privilégios e o processo de seleção é rigoroso. Disciplinados, os membros do PC se infiltram por toda a sociedade, da fervilhante indústria musical ao cinema e às universidades, passando pelo Exército e pela polícia. “Há gente de todos os níveis, das quais se exige lealdade absoluta”, diz Kellee Tsai, cientista política da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong. Influentes no mundo corporativo, as células partidárias exigem demonstrações explícitas de fidelidade das empresas e auxiliam no levantamento de deslizes legais e financeiros que são usados para punir quem sai da linha — justamente a tática empregada para controlar Jack Ma, fundador do gigante do varejo on-line Alibaba. Jack cometeu a ousadia de criticar as entidades reguladoras chinesas por “viverem no passado”, foi acusado de irregularidades e multado em quase 1 bilhão de dólares.
Outra marca do partido sob o comando de Xi é o uso de tecnologia para monitorar os espaços públicos e os cidadãos. “Existem câmeras até nas salas de aula das universidades”, diz Bruce Dickson, especialista em relações internacionais da Universidade George Washington. A vigilância digital tem sido amplamente usada em Xinjiang, província no noroeste do país onde vivem 10 milhões de muçulmanos da etnia uigur, que Pequim trata como ameaça à segurança nacional: a vida deles é controlada, as mulheres são estimuladas a não ter filhos e ao menos 10% foram internados em “campos de reeducação”, onde aprendem lealdade aos dogmas do partido. Também alvo de monitoramento e patrulhamento ostensivos, Hong Kong viu se despedaçar o conceito de “um país, dois sistemas” que lhe garantiu certa autonomia ao deixar de ser concessão britânica, em 1997. Uma nova lei de segurança e um novo quadro eleitoral aprovados pelo PC aniquilaram o movimento por liberdades democráticas. Os líderes da oposição estão presos e o Apple Daily, jornal que os apoiava, deixou de circular.
Com Xi, a pretensão do Partido Comunista de fazer da China a maior potência mundial — ou “restaurar sua influência natural”, no jargão partidário — se tornou mais ostensiva. O país financia obras de infraestrutura e investe em economias no mundo todo, fabrica boa parte do que se consome no planeta e tenta impor com mão pesada seu predomínio nas rotas de navegação e em pontos estratégicos ao redor de seu território. Tentando reverter anos de inércia diante do avanço do dragão chinês, os Estados Unidos se empenham agora em formar uma aliança ocidental para contê-lo — iniciativa que serve de argumento para Pequim atrair apoio popular. Com exceção de Cuba, é na Ásia que regimes baseados no comunismo conseguem se manter vivos. Além da China, o Laos, o Vietnã e a Coreia do Norte são governados por partidos de origem marxista. Enquanto o ditador norte-coreano Kim Jong-un conduz uma política isolacionista e belicosa, os vizinhos optaram por uma abertura controlada e adesão à economia de mercado nos moldes chineses. Em comum, todas essas nações foram ocupadas por potências estrangeiras no passado e cultivam desde então forte sentimento nacionalista. Apresentando-se como antítese do egoísmo e do individualismo de europeus e americanos, os regimes comunistas da região sublinham a superioridade dos “valores asiáticos”, pautados em trabalho árduo, disciplina, educação e respeito à autoridade. Batendo nessa tecla do orgulho nacional, alcançam uma estabilidade política que impulsiona o crescimento econômico.
Arquiteto e fundador da República Popular da China, Mao Tsé-tung (1893-1976) é, ainda hoje, a figura mais marcante da história do país. Quando fundou o PC, em uma reunião secreta em Xangai em 1921, a atrasada China era domínio de senhores feudais. Na construção da China contemporânea, Mao cometeu barbaridades — que o partido faz questão de varrer para debaixo do tapete, convicto de que o “niilismo revisionista” seria fatal para o regime. O mesmo Mao, porém, fincou as raízes do pragmatismo ideológico ao introduzir nos anais do partido a antiga expressão chinesa “Procure a verdade nos fatos”, abraçada posteriormente pelo pai de todos os pragmáticos, Deng Xiaoping. Ampliada até o limite, essa capacidade de se dobrar aos avanços de fora e, ao mesmo tempo, moldá-los conforme as suas necessidades é a mola que move a China para a frente, em ritmo de aceleração máxima — a ponto de se encontrar atualmente na posição de rival número 1 da maior potência de todas, os Estados Unidos. Neste momento da história marcado por transformações inimagináveis, o centenário Partido Comunista chinês segue mais forte do que nunca.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744